Conheça o hospital catarinense onde os médicos só recebem quando fazem plantão

Um hospital onde os médicos só recebem quando fazem plantão, com taxa de mortalidade inferior a 2% e “apenas” quatro mortes entre os 210 pacientes internados com Covid-19? Mais parece a descrição de um hospital de algum país nórdico, mas fica em Ponte Serrada (SC).

Todos os dias no Hospital Santa Luzia começam da mesma forma. Durante 15 minutos, todas as áreas se reúnem para apresentar os desafios das últimas 12 horas e as necessidades para a jornada seguinte, além das informações pertinentes para o dia de trabalho.

É um momento voltado para a segurança do paciente e para todos os tipos de melhoria – por exemplo, a faxineira pode chamar a atenção do diretor médico sobre a rotina de limpeza e higienização do hospital.

Chamado de Safety Huddle, ele permite que todos tenham lugar de fala e compartilhem aquilo que julgam importante para o bom desempenho de suas funções. Uma ferramenta simples, mas ainda rara em hospitais de Santa Catarina e até do Brasil.

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Isso ocorre porque o Santa Luzia, que desde 2019 é a associação sem fins lucrativos Santo Expedito (atual mantenedora), tem uma filosofia baseada em mudança de cultura e quebra de paradigmas que vem chamando a atenção de outros hospitais da região – a equipe vem sendo convidada a apresentar suas iniciativas em outras cidades de SC, como no infantil Seara do Bem, em Lages.

“Outra atitude ainda pouco comum é a troca de plantão da enfermagem e equipe médica, que aqui acontece ao mesmo tempo, com toda a equipe reunida. Discutimos os casos e esclarecemos dúvidas, o que evita erros de comunicação e, consequentemente, diminui a ocorrência de eventos adversos, popularmente conhecidos como erro médico”, explica o médico e diretor técnico Délcio Castagnaro.

Os números comprovam que essas ações simples resultam em mudanças significativas. Desde que a atual gestão assumiu, em fevereiro de 2019,  houve diminuição de 32% na taxa de transferência para outros hospitais, melhora sensível nos indicadores de média de permanência geral no hospital (diminuição média em cerca de 2,5 dias) e queda da mortalidade em aproximadamente 20%.

“Em dois anos, foi como abrir um hospital novo em uma estrutura já existente. Talvez teria sido mais fácil ter construído uma entidade nova do que ter assumido esse desafio de pegar uma instituição que não tinha a confiança da população e transformá-la. A mudança foi da água para o vinho”, conta Luana Dondé, que começou como enfermeira e hoje é gerente institucional.

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Antes de se tornar uma associação e implementar diversas mudanças na cultura e na gestão, o hospital sofria com falta de médicos. Agora com corpo clínico completo, o número de plantões aumentou de 39 para 62 por mês, em média.

Já a média de atendimentos na emergência evoluiu de 774 por mês para 1167. A média mensal de admissões na enfermaria (internações) passou de 164 para 218, enquanto o número de colaboradores aumentou de 24 para 47.

Outra mudança importante está relacionada ao fato de que, após três anos, voltaram a nascer crianças no hospital de Ponte Serrada. Apesar de não ter maternidade, o Santa Luzia agora consegue atender partos de emergência sem que seja necessário o transporte da gestante até a cidade de Xanxerê por falta de médicos.

Atuação no combate à Covid-19 tornou hospital referência no país

Apesar de ser um hospital de médio porte e sem centro cirúrgico, durante a pandemia, atendendo a um pedido do Estado, foram abertos 30 leitos de enfermaria para receber pacientes de toda a região. Hospitais de cidades maiores e com mais estrutura, como Xanxerê e Chapecó, enviam pacientes para tratamento em Ponte Serrada.

Mesmo sem ter uma infraestrutura condizente com grandes hospitais, a taxa de mortalidade ficou em menos de 2%. Dos 210 pacientes internados com Covid-19 desde o início da pandemia, apenas quatro faleceram. 20% dos pacientes foram transferidos para outros hospitais e UTI e 164 tiveram alta e voltaram para casa (78%)

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“A abertura desses leitos e o fato do hospital auxiliar os demais municípios da região consagra essas mudanças. Ponte Serrada, tradicionalmente, era uma cidade que referenciava os pacientes para outras cidades e possuía um perfil de baixa resolutividade e que agregava de forma limitada à rede hospitalar da região. A possibilidade de outros municípios virem buscar atendimento no município e do hospital desafogar as enfermarias de hospitais maiores, liberando-os para os casos mais complexos,  mexeu com a autoestima não só do hospital, mas do próprio município. Além disso, o feedback dado pelos pacientes e os bons indicadores reforçam essa percepção”, celebra Castagnaro.

Hospital é coordenado por jovens médicos recém-formados

Quando se trata de inovação na saúde, muitas vezes a verdadeira transformação está relacionada à mudança de cultura e ao engajamento da equipe. As ações diárias e processos realizados no Hospital Santa Luzia podem ser simples, mas é preciso esforço de todos os colaboradores para garantir que a atual filosofia do não seja apenas mais um papel colado na parede. Nesse processo, o papel dos gestores é fundamental para motivar e garantir que todos estejam na mesma página.

“Cresci em Ponte Serrada. Depois de me formar na UFSC, retornei com colegas para assumir a parte clínica do hospital. Vim com uma ideia um pouco diferente, mais como experiência de vida do que qualquer outra coisa. Não fui direto para a residência, o que é considerado fora da curva. Quando chegamos, no início de 2019, o hospital não tinha nem médico de dia, e passou a ter. Várias coisas foram acontecendo e melhorando, e no final daquele ano veio a ideia de criar uma associação para assumir a instituição”, relembra Castagnaro.

O médico ficou no primeiro lugar geral do vestibular da UFSC no ano que passou na Universidade. Durante a graduação, Castagnaro, o médico Erick Takahashi e outros colegas que o acompanharam até Ponte Serrada tiveram contato com o movimento global Hacking Health, que os ajudaram a perceber que há outros caminhos no exercício da medicina.

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O Hacking Health é uma fundação canadense sem fins lucrativos que promove a inovação inclusiva, conectando pessoas para resolver problemas de saúde do mundo real. Voluntários em todo o mundo se unem com o objetivo de romper as barreiras à inovação na área de saúde: são pacientes, profissionais de saúde, médicos, tecnólogos, designers, empresários, tomadores de decisão, líderes empresariais, pesquisadores e gestores públicos, que trabalham de forma colaborativa para resolver problemas da linha de frente.

Em 2017, em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina, a ONG organizou o primeiro Hacking Health SC, evento que selecionou três ideias de tecnologia para solucionar desafios da saúde. Os participantes, entre eles os atuais médicos coordenadores do Santa Luzia, foram desafiados a pensar em soluções a partir dos dados da fila do SUS.

A equipe brasileira da fundação acompanha de perto a situação do Hospital Santa Luzia e comemora os resultados alcançados em tão pouco tempo:

“Nos dias atuais, muito se fala em inovação e transformação em saúde, em saúde 4.0. No Hospital Santa Luzia, mais do que falar de inovação, ela foi aplicada na prática e a tal inovação não foi nada além de fazer o feijão com arroz. Fazer o elementar é sempre o mais desafiador. Médico que trabalha em parceria com a enfermagem, área administrativa focada em melhorar as condições de trabalho da área assistencial, entre outros exemplos. A mudança de mindset sugerida pelo Hacking Health para o Hospital Santa Luzia tem resultados que falam por si. Esperamos que este primeiro caso de sucesso seja replicado para outros hospitais”, diz Ivan Moraes, coordenador nacional do movimento Hacking Health.

Agora, um dos desafios é perpetuar a filosofia aos profissionais da próxima geração. Para isso, começam a ser costuradas parcerias com universidades da região para estágios, campos de pesquisa e outras atividades em conjunto.

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