Tomada de cidade por extremistas e decapitação de crianças expõem caos em Moçambique

Cercada desde quarta (24), a cidade de Palma, a poucos quilômetros de um enorme complexo de gás no norte de Moçambique, foi tomada por extremistas neste sábado (27). Há relatos de que grande parte do município de 75 mil habitantes na província de Cabo Delgado tenha sido destruída e de que cadáveres estejam nas ruas, segundo fontes à agência AFP, entre as quais membros da ONG Human Rights Watch.

Conhecida pelo nome de al-Shabaab, a milícia islâmica responsável pelo ataque –sem relação com a organização terrorista de mesmo nome na Somália– já havia feito outra ação na quarta-feira, mesmo dia em que o grupo francês Total anunciou a retomada de obras da refinaria de extração de gás. Com as ações deste sábado, a empresa voltou a suspender suas operações na região.

Os conflitos forçaram a retirada de cerca de 200 pessoas de um hotel, e alguns dos trabalhadores estrangeiros abrigados ali podem ter morrido em uma emboscada, ainda que os detalhes da ação não estejam claros. O governo de Moçambique confirmou o ataque e disse que forças de segurança iniciaram uma ofensiva para expulsar os extremistas da cidade, mas desde quinta (25) não há declarações oficiais.

Desde 2017, os extremistas da al-Shabaab, que juraram fidelidade ao Estado Islâmico, têm saqueado vilarejos e cidades em diferentes províncias, o que provocou o êxodo de 700 mil pessoas, segundo a ONU.

Em um conflito em que os ataques vêm de insurgentes, de forças de segurança do governo e de uma empresa militar privada, a população de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, também vê os mais jovens sofrerem as consequências.

Documento da agência da ONU para refugiados (Acnur), divulgado na segunda-feira (22) e baseado em visita ao país, relata a ocorrência de mulheres e meninas sequestradas, forçadas a se casarem e, em alguns casos, estupradas ou submetidas a outras formas de violência sexual.

Os meninos, por sua vez, são alvos da insurgência, que os vê como possíveis soldados. Ao Acnur, Herculano, 64, um dos cerca de 670 mil deslocados internos, narrou a destruição de casas e a tortura de moradores. “Vimos insurgentes atrás de crianças para recrutá-las. Tememos pelas nossas crianças.”

Ele e a mulher, Isabella, 50, deixaram o vilarejo de Quissanga junto com os dez filhos e oito netos. Para fugir, correram por horas até se esconderem em uma densa vegetação, onde permaneceram por quase uma semana com acesso limitado a água, sem comida nem abrigo, segundo o relato ao Acnur.

O recrutamento pelos insurgentes, porém, não é o único risco ao qual as crianças de Moçambique estão expostas. No início do mês, a ONG britânica Save the Children denunciou a decapitação de jovens com até 12 anos. A organização coletou depoimentos de famílias que, além de terem sido forçadas a deixarem suas casas, relataram cenas terríveis. Em um dos casos, Elsa (nome fictício), 28, contou que seu filho mais velho, de 12 anos, foi capturado e decapitado enquanto tentavam fugir. Ela e seus outros três filhos conseguiram escapar. A moçambicana diz que não pôde fazer nada por medo de que eles fossem mortos.

Em outro depoimento, Amelia (nome fictício), 29, relatou que um de seus filhos, de 11 anos, foi morto por homens armados. Para deixar a área de conflito, ela, o marido e os outros filhos passaram cinco dias comendo bananas verdes e água de bananeira até conseguir transporte.

Apesar de não ser o foco do relatório da Anistia Internacional divulgado no início do mês, a denúncia da Save the Children é consistente com o estudo realizado pela organização, afirma o pesquisador da entidade para Moçambique e Angola, David Matsinhe. “Há vários casos de crianças sendo sequestradas, e algumas, mortas”, diz. Além dos assassinatos, o pesquisador relata que os insurgentes têm raptado crianças para transformar meninos em soldados, e meninas, em “esposas”.

O documento relata o sequestro de jovens e meninas com idade de até sete anos pelo al-Shabaab. Segundo relatos feitos à Anistia Internacional, civis que conseguiram retornar a locais de conflito encontraram corpos decapitados, alguns deles de adolescentes, espalhados nas ruas e em áreas abertas dos vilarejos. Uma avó de 52 anos disse que, ao voltar à região onde morava uma semana após sua fuga, testemunhou o que a facção havia feito. “Os meninos estavam decapitados e apodrecendo.”
De acordo com o relatório, ainda é preciso conduzir investigações mais aprofundadas para medir a escala dos sequestros e das violações cometidas pelo al-Shabaab, incluindo os casos de violência sexual e de recrutamento de crianças-soldados. Gillian Triggs, alto comissário-adjunto do Acnur para proteção, visitou a área e definiu a situação como uma “tragédia humanitária”.

O conflito em Cabo Delgado se estende pelo litoral norte de Moçambique, de Pemba até Palma, na fronteira com a Tanzânia. Segundo Matsinhe, os insurgentes são jovens, em sua maioria do sexo masculino, nascidos na província de maioria muçulmana em um país com predominância católica.

O funcionário da Anistia Internacional explica que os insurgentes são fruto de um longo período de exclusão política, econômica e social. Após séculos sob controle português, Moçambique conquistou sua independência em 1975. Nesses mais de 45 anos como um Estado livre, porém, a região de Cabo Delgado foi ignorada pelo governo central, afirma o pesquisador.
A população local tinha como base de sua sobrevivência os recursos naturais. Para Matsinhe, o conflito se formou quando o governo central descobriu a existência das reservas e começou a explorá-las sem oferecer desenvolvimento econômico e social para os moradores da região,

As multinacionais que possuem projetos em Cabo Delgado, por sua vez, não empregam a população da região, diz o pesquisador, mas moçambicanos de outras províncias ou pessoas de fora do país.

Para o bispo brasileiro dom Luiz Fernando Lisboa, que estava alocado em Pemba e ajudou a dar voz às vítimas do conflito, a associação do al-Shabaab ao Estado Islâmico é uma “capa religiosa para uma guerra que não é religiosa, uma guerra que tem como principal motivo a economia”. O megaprojeto para extração de gás liderado pela francesa Total, por exemplo, é avaliado em US$ 20 bilhões (R$ 113,6 bilhões).

Os confrontos já somam 2.658 mortos, dos quais 1.341 são civis, de acordo com dados mais recentes do Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados. Para o levantamento, o primeiro mais extenso realizado pela Anistia Internacional, foram ouvidas 79 pessoas que deixaram a região do conflito e estavam em campos para deslocados, em Pemba e Metuge.

A ONG também analisou imagens de satélite, fotografias e informações balísticas e entrevistou analistas de entidades internacionais, jornalistas, trabalhadores humanitários e monitores locais de direitos humanos, além de contar com uma consultoria que investigou conteúdos de redes sociais.

O documento precisou ser feito a distância, pois a entrada em áreas de conflito é proibida para jornalistas, investigadores internacionais e organizações humanitárias. “O que eles [governo] estão escondendo? Do que têm medo?”, questiona Matsinhe. “Suspeitamos que estão fazendo muitas coisas que nós, monitores de direitos humanos, podemos acabar descobrindo. Há denúncias de valas comuns.”

Assim, para a Anistia Internacional, o governo de Moçambique se torna mais um ator da violência contra moradores da região. “Essas forças do governo, que incluem militares e polícia, conduziram execuções extrajudiciais, cometeram atos de tortura e mutilaram corpos de suas vítimas”, diz o relatório. Após a publicação do documento, a Reuters fez pedidos de comentários ao governo, que não respondeu.

A população de Cabo Delgado se vê presa num triângulo de violência, afirma Matsinhe, pois ainda há a atuação de uma empresa militar privada, a Dyck Advisory Group, originária da África do Sul.

O documento da ONG diz que, de acordo com 53 testemunhas, o grupo tem usado armamento pesado em helicópteros e atirado granadas indiscriminadamente contra multidões, sem diferenciar alvos civis de militares. “São violações das lei internacionais de direitos humanos e humanitária”, afirma o pesquisador.

Por isso, a Anistia Internacional pede que o acesso à região seja liberado e seja realizada uma investigação imparcial, independente e transparente do que ocorre na região. Somam-se à violência e ao trauma as condições precárias que as centenas de milhares de deslocados internos precisam enfrentar.

Nas cidades de Niassa, Nampula e Pemba, essas pessoas vivem sem comida e sem água, o que dificulta uma das medidas básicas para evitar a propagação do coronavírus: lavar as mãos.
Com a superlotação nos campos de acolhimento, também é difícil manter qualquer tipo de distanciamento social. Assim, além da Covid-19, há também o aumento dos casos de malária. No aspecto social, muitas das crianças não frequentam a escola há mais de três anos, quando o conflito estourou.

Para lidar com o confronto, que começou a ganhar projeção internacional no ano passado, em parte devido às denúncias feitas pelo bispo brasileiro, Matsinhe afirma que a solução passa por desenvolver um programa que invista na infraestrutura local, mais do que oferecer ajuda militar.

Os EUA, por exemplo, que declararam o al-Shabaab uma organização terrorista devido à ligação com o Estado Islâmico, anunciaram o treinamento de fuzileiros navais moçambicanos por forças especiais americanas durante dois meses. Segundo afirmou a representação de Washington em Maputo, o país irá providenciar ainda auxílio médico e equipamentos de comunicação para ajudar no combate a insurgentes.

“Nossa visão é que [a intervenção militar] não vai garantir paz e segurança, e a guerra apenas iria escalar”, afirma Matsinhe, ressaltando que a região precisa de escolas, serviços de saúde, telecomunicações e, em especial, geração de empregos para a população de Cabo Delgado.

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