Talibã coloca grupo terrorista para cuidar da segurança de Cabul

IGOR GIELOW (FOLHAPRESS) – O Talibã colocou a segurança de Cabul sob responsabilidade de uma dos mais perigosos grupos associados ao movimento fundamentalista islâmico que retomou o controle do Afeganistão no domingo (15), a rede Haqqani.

A decisão ocorreu em meio ao caos vigente na região do aeroporto da cidade, única rota de saída aérea da região, que já deixou ao menos 12 mortos e que nesta sexta registrou o primeiro ocidental ferido a bala -um civil alemão.

Grupo terrorista para as Nações Unidas e para os Estados Unidos, a rede é conhecida por algum dos maiores ataques ao longo dos 20 anos de anos de presença ocidental, inclusive o mais mortífero em Cabul, a explosão de um carro-bomba que matou 150 pessoas em 2017.

A informação foi confirmada à imprensa paquistanesa pelo ex-chanceler Abdullah Abdullah, que se encontrou em Cabul na quinta (19) com líderes da rede, nas negociações para montar um novo governo.

“Isso é o pior sinal possível”, disse por meio de mensagem eletrônica o jornalista Ahmed Ali, que está escondido com amigos desde que o Talibã tomou o poder, numa campanha militar na esteira da retirada americana.

Ele repete os relatos dos últimos dias: forças talibãs estão fazendo buscas em casas de famílias das pessoas que trabalharam com ocidentais ou com o governo afegão durante a ocupação. Os grupos se alertam por meio de aplicativos de mensagens, mas temem cada vez mais serem monitorados.

Segundo ele, a situação está piorando a cada dia, o que contrasta com a promessa vazia do Talibã de anistia geral e irrestrita no país. “Eles querem nos matar”, disse ele, que trabalhava para canais de TV como produtor e foi intérprete de jornalistas ocidentais.

A rede Haqqani é um dos grupos de “mujahedin” (guerreiros santos) egressos da luta contra a ocupação soviética do Afeganistão, de 1979 a 1989, tendo recebido armamentos e recursos de Washington –naquela época, mais interessada em desestabilizar Moscou do que se preocupar a quem armava.

Em 1995, associou-se ao Taleban, rumo à conquista do governo durante a guerra civil, o que ocorreu no ano seguinte. Seu fundador, Jalaluddin Haqqani, manteve laços próximos também com a Al Qaeda de Osama bin Laden, que se mudaria para o país.

Desde 2018, com a morte de Jalaluddin, seu filho Sirajuddin lidera o grupo, que tem talvez 10 mil combatentes. É parte do comando do Talibã.

A Organização das Nações Unidas e os EUA declararam o grupo como terrorista. É basicamente um ato político, em especial em relação ao governo americano.

O Talibã, que é terrorista para a ONU desde 1999, nunca foi colocado na lista americana porque, apesar de ele preencher os requisitos para tal, seria impossível manter contatos ao longo dos anos com a sanção aplicada.

Esse diálogo levou ao acordo de paz de 2020, ratificado pelo presidente Joe Biden com o anúncio da retirada, em abril. Os EUA, decididos a sair, disseram acreditar nos compromissos talibãs de buscar uma solução negociada e se comportar de maneira civilizada.

O grupo rompeu a primeira promessa ao atacar de forma fulminante o governo de Ashraf Ghani, ora exilado nos Emirados Árabes Unidos. Agora, promete moderação e tem cinco itens para se diferenciar do regime medieval que impôs de 1996 a 2001, quando foi expulso pelos EUA após a retaliação pelo 11 de Setembro.

São eles: anistia, manutenção de direitos humanos (em especial das mulheres), fim do tráfico de ópio, fim do jihadismo contra outros países e a segurança de embaixadas e organismos internacionais.

A repressão a atos de protesto nos últimos dias e a perseguição a colaboradores de ocidentais mostram sinalizam o que pode estar por vir.

Por ora, os ocidentais se concentram na evacuação e deixam o barco correr. A China, por sua vez, incentiva apoio ao Talibã e os russos observam, notando que há uma tentativa de resistência em curso no norte do país.

O romance chinês prospera. Após o chanceler Wang Yi dizer na quinta que o mundo precisava conversar com o Talibã, o porta-voz do grupo Suhail Shaheen disse ao canal estatal de Pequim CGTN que “A China pode ter um papel muito grande na reconstrução do Afeganistão”.

Nesta sexta, houve o primeiro incidente direto com um cidadão estrangeiro na confusa evacuação de ocidentais e afegãos ligados a embaixadas na capital. Um civil alemão que se dirigia ao aeroporto foi baleado em condições não reveladas.

Segundo o governo alemão, ele está bem e será retirado em um dos aviões militares do país, que decidiu enviar dois helicópteros leves para fazer mini pontes aéreas entre o aeroporto e locais de difícil acesso.

A maioria dos milhares que até segunda-feira (16) estavam na pista do aeroporto, contudo, não terá tal sorte. Depois do infame episódio no qual ao menos dois afegãos morreram ao se agarrar ao trem de pouso de um cargueiro levantando voo, a região foi evacuada.

Todo o entorno do aeródromo foi tomado por pessoas desesperadas, e o Talibã estabeleceu pontos de controle para vetar o acesso de afegãos sem passaporte e visto -ou seja, quase todo mundo.

O acesso ao local, que fica 5 km ao norte do centro e é ligado ao prédio da embaixada dos EUA pela apropriadamente chamada Airport Road, registra filas enormes. Repórteres ocidentais que conseguiram entrar contaram ter demorado cinco horas entre os civis, muitos com bebês como o que foi içado por um soldado americano no muro do aeroporto na quinta (19).

“A vasta maioria dos afegãos não conseguirá sair do país. Aqueles que estão em perigo não tem saída livre”, disse em Genebra Shabia Mantoo, porta-voz do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados).

Quase 20 países receberam afegãos retirados pelos ocidentais –até quinta (19), eram 8.000 pessoas ao todo, segundo a Otan (aliança militar liderada pelos EUA), mas não havia uma discriminação de quantos eram locais.

A ONU também estima em 550 mil as pessoas que já deixaram suas casas devido à campanha de duas semanas que culminou na queda de Cabul no domingo. Como disse o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, “é uma catástrofe”.

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