SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O desmoronamento do governo afegão sob ataque do Taleban, que nesta quinta (12) conquistou mais duas cidades estratégicas no país, expõe o fracasso do plano americano de aumentar a musculatura militar dos aliados em Cabul.
A atual ofensiva, iniciada no domingo retrasado, viu 12 capitais provinciais caírem para o Taleban desde a sexta (6).
As três tomadas nesta quinta são vitais e praticamente isolam Cabul.
Herat é a terceira maior cidade do país e ponto focal em seu oeste. Ghazni, 150 km a sudoeste de Cabul, é importante por ser a ligação entre a capital e Kandahar. Esta última, segunda maior cidade do país e coração espiritual do Taleban, acabou por fim caindo.
A ação desvelou a estratégia do Taleban. Com o norte do país, mais hostil à base étnica do Taleban, praticamente dominado, o foco foi o sul-sudoeste -Kandahar foi o ponto de onde o movimento emergiu após ser formado no Paquistão nos anos 1990.
Há ataques em outras áreas, com grande brutalidade. A reportagem ouviu no Ministério das Relações Exteriores que estão morrendo de 300 a 400 soldados todos os dias.
O avanço do grupo fundamentalista islâmico, que governou 90% do país de 1996 até ser expulso pela invasão dos EUA em 2001, tem causado surpresa no Ocidente por sua velocidade.
Não deveria. Um minucioso trabalho de Jonathan Schroden, diretor do Centro de Estabilidade e Desenvolvimento da CNA Corporation, um “think tank” de Arlington (Virgínia, EUA), alertava em janeiro que a prevista retirada das forças americanas do país teria exatamente o efeito que se vê agora.
A saída final, marcada para 31 de agosto, motivou o Taleban a rasgar o acordo de paz com os americanos. Analistas ainda apostavam na resistência das Forças de Defesa Nacional e Segurança Afegãs, pomposo nome para Exército, Força Aérea, paramilitares e policiais do país.
Ela foi forjada, treinada e equipada pelos americanos ao longo dos 20 anos de sua mais longa guerra, iniciada após o Taleban dar guarida à rede terrorista Al Qaeda, que do Afeganistão tramou os atentados do 11 de setembro de 2001 nos EUA.
A ideia era a de criar Forças Armadas unificadas, algo inexistente num país que passara por dez anos de invasão soviética (1979-89), guerra civil e o regime taleban. No papel, foi um sucesso, ainda que caro: em 2020 os EUA aplicaram US$ 3,3 bilhões na área, ante um orçamento total estimado em US$ 5 bilhões.
Em seu trabalho, Schroden lista seis áreas e compara o poderio de Cabul com o do Taleban.
Sem as forças americanas presentes, diz, “seria sábio para os EUA e para o governo afegão buscar vigorosamente negociações enquanto ainda há forças americanas no país, evitando tentar o Taleban a explorar a vantagem militar que terá na ausência delas”.
O governo central só tem vantagem em duas áreas. Uma, leve na avaliação do autor, é no tamanho de suas forças. São 178,6 mil homens, fora 100 mil integrantes de forças de segurança. É menos do que os 350 mil autorizados por lei, dado que deserção é a lei numa sociedade tribal afeita a lealdades locais.
O Taleban, por sua vez, é uma força irregular e, portanto, sem auditagem de números. Fontes diversas apontam que ele tem 60 mil combatentes regulares e até 140 mil milicianos aliados pelas províncias afegãs.
Não é pouco, especialmente porque segundo Schroden o grupo ganha de lavada do governo na coesão e motivação de suas tropas. Também leva vantagem forte no financiamento, pois os valores entre US$ 300 milhões e US$ 1,5 bilhão anuais são mais que suficientes para sustentar seus armamentos leves.
O dinheiro vem de apoiadores externos, como os serviços secretos do Paquistão, do comércio do ópio e de crimes diversos. Suporte estrangeiro, aliás, é um ponto de empate entre talebans e governistas.
Já a vantagem forte de Cabul está no equipamento. Enquanto o Taleban usa armas leves e itens como peças de artilharia e veículos tomados do inimigo, o governo conta com muito material moderno e, principalmente, com uma Força Aérea antes inaudita.
A estrela desta Aeronáutica é brasileira: os aviões de ataque leve A-29 Super Tucano, da Embraer, feitos sob licença nos EUA. A Força Aérea americana comprou 26 deles e já entregou 23 a Cabul.
A aeronave, usada desde 2016, é considerada ideal para ações de contra insurgência, com baixo custo operacional: é mais barato usar um turboélice bem armado do que um caça pesado.
Foram US$ 8,5 bilhões gastos pelos EUA de 2010 a 2020 para montar essa força. Cerca de 30 pilotos e 70 técnicos para o A-29 foram formados nos EUA.
As ações das forças afegãs no ar chegaram a equivaler a um terço do total dos bombardeios contra alvos talebans há dois anos. Agora, sem a presença de aviões americanos no país, isso mudou.
Os EUA têm feito ataques pontuais contra a ofensiva taleban, usando drones MQ-9, caças-bombardeiros F-15, bombardeiros B-52 e aviões AC-130 oriundos da sua base em Al Udeid (Qatar) e de porta-aviões no Golfo Pérsico.
Tem sido insuficiente e revela outro problema: a saída dos técnicos que apoiavam as frotas de aviões e helicópteros novos dos afegãos deixou o país num apagão logístico.
Segundo relatório do Parlamento em Cabul de junho, um terço das aeronaves está no chão, e dos cerca de 18 mil contratados das forças ocidentais para ajudar os afegãos nos anos 2010, só poucas centenas estão no país.
Há relatos abundantes de mecânicos de helicópteros sendo orientados por subcontratados do governo americano por Zoom, e as bombas guiadas por laser usadas pelos Super Tucano simplesmente acabaram nos estoques.
Isso tudo explica a ineficácia dos aviões brasileiros em deter o avanço em torno de Kandahar e Herat, além de um fator humano: os poucos pilotos do país estão sendo alvo de uma campanha de assassinato seletivo que já matou ao menos 7 dos 30 habilitados a voar o Super Tucano.
Segundo disse no seu relatório de abril o inspetor-geral dos EUA para o Afeganistão, John Sopko, a evasão de pilotos e principalmente de técnicos é grave. Havia em abril apenas 39 técnicos de Super Tucano em ação.
Por fim, além do alto moral de suas tropas, o Taleban conta com uma estratégia mais definida. Enquanto Cabul enfocou a proteção de cidades principais, o grupo ocupou as diversas vilas e passos de montanha em torno delas, esperando a hora favorável de uma grande ofensiva.
Cansadas, desmoralizadas e sem apoio ocidental decisivo, as forças do governo viraram presas fáceis. Uma exceção ocorre em Lashkar Gah (sudoeste), onde tropas especiais ainda seguram o ataque após uma semana e meia.
O governo em Cabul afirma que está pronto para uma reação, mas os sinais até aqui indicam o contrário.
Em resumo, como previu Schroden em janeiro no seu texto publicado pelo centro antiterror da Academia Militar de West Point, nos EUA, a retirada rápida do apoio americano colocou a aparente vantagem numérica e material de Cabul em xeque rapidamente.
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