IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre todos os setores atingidos pela pandemia da Covid-19, poucos saíram tão destroçados quanto o de viagens aéreas. “Estamos numa situação quase catastrófica”, afirma o francês Alexandre de Juniac, 58.
Diretor-geral e presidente da Iata (Associação Internacional de Transportes Aéreos, na sigla inglesa), Juniac afirma que apenas programas de estímulo estatais e a reabertura de fronteiras, baseada em passaportes de vacinação e testagem digitais, poderão resultar em recuperação.
Será um trabalho duro para um setor que emprega 11,3 milhões de pessoas. O volume de transporte aéreo caiu 65,9% (75,6% em rotas internacionais, 48,4% nas domésticas) em 2020, algo sem precedentes, na métrica de demanda, feita a partir da multiplicação de passageiros pagantes pela distância percorrida em voo.
No bolso das empresas, a conta ficou negativa em US$ 118,5 bilhões (pouco mais de R$ 660 bilhões). Cerca de 50, das 290 sob as asas da Iata, quebraram. Isso com governos tendo colocado US$ 225 bilhões (R$ 1,25 trilhão) em pacotes de ajuda.
O Brasil, dada sua condição fiscal, é elogiado pela Iata, apesar de não ter ajudado com verbas. O governo flexibilizou políticas de reembolso, extinguiu tarifa de embarque internacional, abriu espaço em aeródromos da Infraero e da Força Aérea para empresas estacionarem seus aviões ociosos sem custo.
Juniac, que antes presidiu a Air France-KLM, é otimista e acha que a recuperação será forte. Mas concorda que as novas variantes do Sars-CoV-2, como a P.1 que assola o Brasil, são um obstáculo porque tendem a criar mercados com velocidades diferentes de estágio da pandemia.
A saída é sugerida pela própria associação, o Iata Travel Pass, um aplicativo que recebe informações certificadas sobre imunização e testagem de passageiros, que teve seu primeiro experimento nesta quarta-feira (17).
No Brasil, o volume doméstico, que havia caído 50% em 2020, vinha se recuperando até chegar a janeiro com 79% dos níveis pré-crise. Mas o recrudescimento da pandemia derrubou o índice para 52% em fevereiro, com viés de piora.
Já as rotas internacionais não se refizeram do tombo de 72% no ano passado no país.
O diretor-geral se queixa da falta de coordenação entre governos e de políticas unilaterais. Juniac, que deixará o cargo no próximo dia 31 após quatro anos, falou ao jornal Folha de S.Paulo de Genebra, na tarde de quarta, por meio de videoconferência.
Pergunta – Na história das viagens aéreas, dois evento se sobressaem em termos de interrupção do crescimento: o 11 de Setembro e a crise de 2008. Elas parecem soluços perto do tombo de 2020, e tudo parece em desarranjo. Qual é o futuro do setor?
Alexandre de Juniac – Primeiro de tudo, nós estamos ainda numa situação quase catastrófica. Mas há dois elementos que nos deixam otimistas para o futuro da indústria.
O primeiro é o apetite por voar. Quando a China reabriu seu mercado doméstico no verão, o lucro subiu e nível de atividade de 2019 foi atingido em novembro. As pessoas correram para os aeroportos.
O tráfego vai voltar, mas por motivos pessoais. Turismo, visitar parentes e amigos. Para o setor de viagens de negócios, vai demorar mais, talvez até 18 meses. Apesar dessa crise, as pessoas vão voltar a voar.
O segundo motivo de otimismo é a vacinação, ainda que esteja desigual e mais lenta do que gostaríamos. Nós vemos governos, como o do Reino Unido, colocando a questão da reabertura do país às viagens aéreas.
O mercado estima 2024 como o prazo para a recuperação do nível de atividade pré-pandemia. O sr. concorda?
AJ – Sim, mas pode ser até um pouco antes, para viagens de turismo. Para negócios, 2025.
O surgimento das variantes novas do coronavírus, como o caso do Brasil mostra, pode gerar uma velocidade dupla de recuperação nos diferentes mercados. Como isso afeta um negócio tão interconectado quanto o das viagens internacionais?
AJ – A dificuldade que temos é a falta de coordenação entre os países e a falta de consultas entre governos e a indústria.
Uma das lições centrais da pandemia é que lidar com um evento global de forma desorganizada e unilateral pelos Estados é a pior coisa a ser feita. As diferenças de recuperação entre os países serão um obstáculo significativo para a recuperação da nossa indústria.
Nós tentamos levar os países a cooperar mais com organizações internacionais, como a Iata, a Icao (Organização da Aviação Civl Internacional), a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e a OMS (Organização Mundial da Saúde).
Francamente, isso não tem sido muito bem-sucedido até aqui, infelizmente. Não é um problema só da América do Sul ou do Brasil, é em todo canto.
O sr. disse em entrevista mais cedo que estímulo governamental é essencial.
AJ – Sim, precisamos. Somos gratos ao que os Estados têm feito, é significativo. Mas prevemos um “cash burn” [gasto de reservas] de US$ 75 bilhões a US$ 90 bilhões nos próximos seis ou oito meses pelas empresas aéreas. Nesse período, nós pedimos mais apoio financeiro de governos.
Quantas empresas, entre as 290 que fazem parte da Iata, quebraram em 2020?
AJ – Entre 40 e 50. Se os Estados agirem e a recuperação ocorrer como estamos prevendo, poderemos limitar o dano. Mas ainda haverá falências.
O movimento ambientalista pede para que o corte nas emissões de carbono, que caíram dramaticamente em 2020, seja permanente. Isso é viável?
AJ – Não. O nível de 2020 não é possível porque nós não podíamos voar. O que decidimos é ter 2019 como o padrão para nossos programas de redução de emissão e de compensações ambientais.
Analistas acreditam que haverá uma mudança no mercado de aviação, mais focado nas rotas regionais. O sr. vê isso?
AJ – É muito difícil fazer qualquer previsão sólida para as rotas. A rede atual é completamente desenhada para as viagens de longa distância. Assim, quando as restrições acabarem, acho que vamos voltar a uma situação mais ou menos normal. A questão central é reabrir fronteiras e levantar restrições de viagem.
Como o Iata Travel Pass pode ajudar nisso?
AJ – É uma contribuição-chave. Nós precisamos ajudar os governos a ter confiança de que não irão importar o vírus com os passageiros. Eles precisam de uma forma de certificação de que o passageiro está imunizado, vacinado, testado, e esse instrumento precisa ser totalmente confiável.
E a questão da segurança de dados?
AJ – Há dois requerimentos básicos. Primeiro, o passageiro tem controle sobre seus dados. Ele fica no celular, e não é passado para nenhuma base de dados de governos ou empresas. Segundo, trabalhamos muito na cibersegurança.
Ao fim, o objetivo é digitalizar todo o processo de viagem aérea. Certamente. Isso é uma questão na qual já vínhamos trabalhando há tempo. Nosso programa de identificação digital é complementar a tudo isso. Seria estúpido pensar em voltar ao processo em papel em 2021. A pandemia enfatizou a importância do digital.
O Iata Travel Pass está sendo projetado com 14 empresas. Em que ponto entram os governos, já que são eles que terão de aceitar os passageiros?
AJ – Nós já temos 33 países, de mercados principais, numa forma bilateral. Eles já aceitaram em princípio. Também trabalhamos com Icao, OCDE e OMS.
O Brasil inclusive? Qual sua visão da posição do governo brasileiro nesta crise?
AJ – Sim. O Brasil, isso é interessante, foi um dos poucos países que não fechou suas fronteiras e só fez algumas restrições a viajantes. O governo brasileiro tomou diversas medidas para ajudar a indústria [pede então para que o representante da IATA no Brasil repasse depois as iniciativas].
Por fim, o governo brasileiro, assim como todos, foi pego de surpresa. Nós vimos em vários lugares do mundo políticas não muito consistentes, para ser educado. A recuperação precisa de coordenação.
A recuperação do mercado de transporte de carga sinaliza uma mudança no mercado?
AJ – Empresas aéreas podem migrar para essa modalidade? Nós vemos algo assim, mas não é algo comum. Não estou certo de que isso seja uma tendência. A demanda de carga caiu 8% na crise em volume, mas o preço subiu devido à queda na capacidade. Não sei se isso é uma tendência de longo prazo.
O sr. ficou quatro anos à frente da Iata. O que vê como legado?
AJ – Primeiro, o fato de que a Iata segue a referência em aviação, e provavelmente essa autoridade cresceu na crise. Segundo, mostramos a habilidade para mudar para o modo de crise rapidamente. Terceiro, acho que fizemos um grande trabalho no desafio das próximas décadas, que é o ambiente e a sustentabilidade.
Raio-X
Alexandre de Juniac, 62
Nascido em Neuilly-sur-Seine (França), cursou a Escola Politécnica e a Escola Nacional de Administração. Serviu no governo francês e trabalhou no setor aeroespacial.
De 2011 a 2013, foi presidente da Air France, e de 2013 a 2016, da Air France-KLM.
Desde 2016 é diretor-geral da Iata, cargo que deixa para o irlandês Willie Walsh (presidente da holding da British Airways-Iberia-Aer Lingus).
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