SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Rússia estuda estender as limitações de liberdade de expressão válidas para seus cidadãos, que foram dramaticamente ampliadas depois da invasão da Ucrânia para tolher oposição interna ao conflito, aos estrangeiros em visita ou com residência no país.
O Ministério do Interior elaborou uma proposta de lei que requisita aos estrangeiros aderir a um “acordo de lealdade” que os proíba de “impedir as atividades das autoridades públicas da Federação Russa ou desacreditar de qualquer forma políticas externa ou doméstica do país”.
O texto, segundo relato da agência estatal Tass, prevê também o veto a “negar os valores tradicionais da família e distorcer a contribuição do povo soviético à vitória sobre o fascismo” na Segunda Guerra Mundial. Não ficam estabelecidas as punições eventuais para todos esses casos.
O texto não é específico, mas o texto sugere restrição ainda maior ao trabalho de jornalistas, isso às vésperas do início da campanha presidencial que deverá referendar um quinto mandato a Vladimir Putin, no poder no Kremlin desde o fim de 1999.
A grande maioria dos órgãos de imprensa estrangeiros retirou cidadãos não-russos do país, que viu a sua remanescente mídia independente ser esmagada pelas regras de cerceamento da liberdade de expressão. Na visão do Kremlin, críticas vindas de fora são uma forma de interferência, geralmente bancada pelo Ocidente.
Desde 2012, veículos, ONGs ou institutos que recebem financiamento externo são tachados como “agentes estrangeiros”, sendo submetidos a auditorias draconianas e limitações que ao fim costumam levar a seu fechamento.
Mas foi com a guerra de 2022 que as coisas desandaram, após quatro anos de aperto sobre a oposição e a imprensa que se seguiram à quarta eleição de Putin e ao hiato liberal da Copa do Mundo de 2018.
Uma nova lei permite penas de até 15 anos de prisão a pessoas que, na visão de juízes sempre pró-Kremlin, desacreditem o governo e as Forças Armadas. Até a guerra tem de ser chamada de “operação militar especial” pela mídia.
Com isso, se multiplicaram casos de jornalistas e ativistas processados, alguns condenados. Ganhou notoriedade o caso da editora de uma TV estatal que fugiu do país após fazer um protesto contra a guerra no ar, sendo condenada a posteriori. Jornais, como a Novaia Gazeta editada pelo Nobel da Paz Dmitri Muratov, fecharam suas operações russas.
Em paralelo, houve episódios mais rumorosos, como a prisão de um profissional do americano The Wall Street Journal, Evan Gerchkovitch, acusado do muito mais grave crime de espionagem durante a apuração de uma reportagem.
Nas Redações do país, agora majoritariamente estatais ou próximas do governo, o clima que prevalece é o da autocensura. Conversas casuais que possam ser vistas como subversivas, por assim dizer, só com aplicativos mais seguros de troca de mensagens operados com VPN (sistema que permite navegar a partir de servidores fora do país).
A iniciativa, contudo, pode ser só um alerta. Em 2021, a pasta quis fazer a mesma sugestão à Duma (Câmara baixa do Parlamento), mas ela não nem chegou a ser enviada. Segundo disse à Tass Valentina Kazakova, chefe do Departamento de Imigração do ministério, não há um prazo para que o envio ocorra.
Naquele ano, contudo, não havia a guerra. E as eleições presidenciais russas, em março de 2024, ainda estavam distantes.
O conflito na Ucrânia tem apoio majoritário na população russa, mas há nuances importantes. Na mais recente pesquisa do Centro Levada, instituto independente que é considerado um “agente estrangeiro” pelo Kremlin, 76% dos ouvidos diziam aprovar as ações das Forças Armadas na guerra.
O diretor do Levada, Denis Volkov, descarta que o temor de falar a verdade à luz das leis repressivas seja um fator importante a distorcer essa percepção. Ele escreveu um longo artigo recentemente detalhando isso, trabalhado sobre dados qualitativos e quantitativos, sugerindo que os russos não distinguem Estado de governo -logo, adotam uma atitude de “esperar até o pior passar”, em suas palavras.
O único momento em que o equilíbrio pareceu ameaçado foi no fim do ano passado, quando Putin decretou a mobilização de 300 mil reservistas para a guerra, gerando protestos que foram reprimidos com prisões. Ali, o Levada detectou uma queda forte no sentimento de satisfação da população, mas ele não chegou a afetar o apoio à guerra ou a Putin (sempre em torno dos 80%).
Ao mesmo tempo, na pesquisa publicada em 31 de outubro, 55% dos ouvidos preferiam negociações de paz do que a continuidade da guerra, o que ajuda a sustentar a visão ambígua de Volkov. A maioria também disse que apoiaria Putin em qualquer cenário sobre a Ucrânia, e apenas 13% acreditavam que a culpa pela invasão era de Moscou.
Já a inclusão da questão dos valores e da história soviética vai em linha com a pregação oficial de Putin. O presidente tem longo histórico de defesa de posições conservadoras, e o país criminaliza o movimento LGBTQIA+.
Politicamente, o insere como um ataque do Ocidente às estruturas históricas russas, da mesma forma com que refuta e pune quem nega o papel da União Soviética no combate à Alemanha nazista, uma vitória que cala fundo na psiquê nacional, tendo custado a vida de membros de quase 70% das famílias hoje vivas na Rússia.