Há mais de uma década o holandês Kees Veldboer parte em viagens quase diárias a museus, aquários, igrejas, jardins, estádios e praias com pessoas que solicitam seu serviço de transporte.
No entanto, ele não é um guia turístico: Kees é um motorista de ambulância que ajuda pacientes terminais a realizar seus últimos sonhos e desejos.
Até aqui, milhares de pacientes que não podiam andar ou sair de seus quartos sozinhos já receberam auxílio do motorista para ver seus lugares favoritos antes de morrer.
Em entrevista à BBC, Kees disse que muitas viagens “são de despedida”. Uma delas, que ele afirma ter sido memorável, foi até Roma, na Itália, em uma corrida contra o tempo para permitir que uma idosa de 60 anos acamada pudesse ver o Papa.
Dias depois do encontro com o pontífice, a senhora faleceu. “Eu a coloquei em uma maca bem na primeira fila (de frente para a Basílica de São Pedro)”, disse Kees, que viajou 1.600 km de sua casa em Roterdã (Holanda) até a capital italiana.
“O Papa deu-lhe uma bênção e desejou-lhe força. Ele também desejou-lhe sorte na vida após a morte”, relembrou. O momento proporcionou o conforto tão necessário para a mulher em seus últimos dias.
Pedidos específicos
Ao longo dos anos, Kees atendeu a muitos pedidos, inicialmente, estranhos. Um deles foi levar um paciente a um estábulo distante, para que a pessoa pudesse se despedir de seu animal favorito.
Outros pacientes pediram para se despedir de seus animais de estimação.
Rever a casa de infância e a vizinhança também são desejos comuns, assim como assistir partidas esportivas em estádios ou visitar museus, aquários e zoológicos.
“A morte não me afeta”
Em entrevista à BBC, Kees conta que era paramédico e viu a morte de perto por muitos anos. Por isso, a iminência da morte não o afeta.
Na maioria das vezes, os pacientes auxiliados possuem entre 70 e 100 anos. Às vezes, no entanto, o motorista de ambulância é chamado para concretizar o último desejo de pacientes mais jovens – momentos que Kees sente que é mais difícil de lidar emocionalmente.
“É compreensível que pessoas idosas morram. Mas às vezes parte meu coração ver jovens morrendo”, afirmou.
Como lidar com o inevitável
Desde jovem, Kees compreendeu que é “impossível mudar o inevitável”, se referindo à morte. No entanto, ele e todas as outras pessoas podem tornar melhor e mais agradável a vida dos pacientes terminais.
“Depois de entender isso, você passa a ver o mundo de forma diferente”, diz ele. “Não podemos prevenir ou impedir a morte – às vezes, devemos deixá-la seguir seu curso.”
A ideia de sair viajando por aí realizando os últimos desejos das pacientes não foi planejada. Tudo começou após um incidente no trabalho em novembro de 2006.
Visita ao porto
“Naquela época, trabalhava em um hospital e levava um paciente em estado terminal de um hospital para outro. Ele estava em uma maca. Sua expectativa de vida era de três meses, no máximo”, lembra Kees.
No trajeto, o motorista perguntou ao paciente sobre os lugares de que mais sentia falta. Em resposta, ele disse que queria ver os navios e o mar.
Naquele dia, ele ligou para o porto de Roterdã, na Holanda, e foi autorizado a levar o homem para lá. “Pedi ajuda a dois dos meus colegas e no meu dia de folga, levei-o ao porto e coloquei-o perto das ondas.”
O estado de espírito do paciente se transformou completamente. “Ele estava de repente brilhando e sorrindo. E cheio de energia.”
Sensibilizado e feliz com a mudança de humor do homem, Kees moveu a maca para o rebocador para que o paciente pudesse observar muitos navios entrando e saindo do porto.
“Ele vibrou muito e ficou muito emocionado. E disse: ‘Você, um estranho, fez isso por mim!’”, relembrou. Aquele paciente tinha câncer em estado terminal e já não conseguia andar.
Mas ele ainda “amava a vida”, lembra Kees. De volta ao hospital, o homem permaneceu muito contente.
Ele faleceu após seis meses, em abril de 2007, vivendo 3 a mais do que os médicos haviam previsto. “Essa experiência me fez pensar e, em abril de 2007, comecei uma fundação com minha esposa para ajudar pessoas como ele.”
Fundação que oferece serviços gratuitos
Foi aí que nasceu a Stichting Ambulance Wens (Fundação de Desejo de Ambulância, em tradução livre para o português).
Até 2009, ele e sua esposa atendiam aos pedidos enquanto Kees trabalhava como paramédico. No entanto, a demanda cresceu demais e ele largou o emprego para trabalhar na fundação em tempo integral.
“Nossa fundação deve ter ajudado cerca de 15 mil pessoas a fazer ‘viagem de despedida’. Conduzi pessoalmente a maioria delas”, diz ele. “Muitas vezes, via felicidade em seus rostos. Isso me faz continuar fazendo o que faço”, acrescentou.
Hoje, o holandês tem 7 ambulâncias e ajudou a estabelecer fundações semelhantes em 14 países. Sua organização não tem fins lucrativos e os pacientes não são cobrados pelo serviço. “Vivemos de doações”, diz Kees.
Conversa difícil
Na ambulância cabem mais duas pessoas além do motorista e do paciente. Geralmente, a viagem é feita com familiares – quase sempre sem conversa.
“Muitas pessoas não querem falar sobre a morte. As mulheres falam com seus maridos sobre isso, mas os homens relutam principalmente em falar sobre a morte para suas esposas”, disse Kees à BBC.
Vez ou outra, durante a viagem, ele encoraja esse tipo de conversa entre os casais. “Às vezes me sento com eles, começo a conversa e saio depois de um tempo. Quando volto, geralmente os encontro chorando”, disse.
“Não é fácil tranquilizar o seu parceiro de vida – mas isso é muito importante”, frisou.
No diálogo, é comum ver atitudes contrastantes entre as pessoas que estão enfrentando o inevitável. “Algumas pessoas aceitam a morte. Algumas não querem desistir. Mesmo no estágio avançado, acreditam que podem lutar contra ela.”
Algumas pessoas revelam arrependimentos passados e a maioria fica feliz em lembrar as melhores partes.
Não é incomum que pacientes ‘troquem de lugar’ com Kees e perguntem à ele qual seria sua ‘última viagem’ quando sua hora chegar, mas ele diz que não tem certeza do que exatamente gostaria de ver.
“É difícil dizer agora. Só podemos decidir essas coisas nos últimos momentos”, diz ele. “Talvez queira morrer cercado por meus filhos”, completou.
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Fonte: BBC
Fotos: Kees Veldboer / Arquivo pessoal
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