SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morreu nesta quarta-feira aos 100 anos o ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, um dos mais influentes nomes da diplomacia na segunda metade do século 20.
Dois fatos banais ajudam a dimensionar como a inteligência e habilidade de Kissinger foram grandes: nascido em outro país e com forte sotaque estrangeiro que nunca superou, ele conseguiu ser o principal representante dos EUA, uma sociedade com forte tendência ao chauvinismo; judeu, tornou-se o mais poderoso integrante do governo de Richard Nixon, um antissemita.
Heinz Alfred Kissinger, seu nome original, foi capaz de vencer muitos obstáculos aparentemente intransponíveis para uma pessoa com sua história, quase sempre pela admiração que seu talento causava aos interlocutores.
Ele nasceu em Furth, Alemanha, em 27 de maio de 1923. Sua família imigrou para os EUA em 1938, quando os rumos do Terceiro Reich de Adolf Hitler já estavam suficientemente claros.
Em 1943, naturalizou-se americano e lutou no Exército da nova nação contra a antiga na Segunda Guerra Mundial, sempre no setor de inteligência, onde sua fluência em alemão era apreciada.
Depois dos combates, deu início à extraordinária carreira acadêmica que lhe abriu as portas para os políticos: bacharelou-se em ciência política pela Universidade Harvard em 1950, onde também completou o mestrado (1952) e o doutorado (1954, com tese sobre ‘paz, legitimidade e equilíbrio”).
Sua proximidade com os principais círculos intelectuais de Nova York nos anos 1950, quando sua principal atividade era como professor em Harvard, o levou a prestar consultoria a diversas entidades de governo na administração Eisenhower e a colaborar com Nelson Rockefeller, principal líder da ala mais liberal do Partido Republicano.
Rockefeller foi pré-candidato à Presidência do país pelos republicanos em 1960, 1964 e 1968. Na primeira e na terceira tentativas, perdeu para Richard Nixon, seu arqui-inimigo, que não hesitou em chamá-lo como assessor logo que chegou à Casa Branca, em janeiro de 1969.
A comunidade política tinha tal fascínio por Kissinger que o candidato derrotado por Nixon em 1968, o democrata ultraliberal Hubert Humphrey, disse que também o teria chamado para trabalhar consigo se tivesse vencido.
De integrante do Conselho Nacional de Segurança, ele logo passou para a chefia desse órgão, de onde de fato liderava a política externa americana, por causa da fragilidade política e pessoal de William Rogers, secretário de Estado no primeiro mandato de Nixon.
Assumiu formalmente a condição de condutor dos EUA em relações internacionais quando Nixon o nomeou secretário de Estado em 1973 (o primeiro a ter nascido fora do país), cargo em que foi mantido pelo sucessor, Gerald Ford, depois de o caso Watergate levar o presidente à renúncia.
Nos oito anos em que ditou o modo como os EUA lidavam com o mundo, Kissinger estabeleceu o império da “realpolitik”, conceito genérico que contrasta com o do idealismo, e realizou operações diplomáticas inimagináveis para um governo conservador, como o de Nixon, num ambiente de plena Guerra Fria entre capitalismo e comunismo.
Entre os grandes feitos de seu “mandato”, a aproximação com a China e seu posterior reconhecimento por Washington sem dúvida é o mais sensacional.
Mas a assinatura de acordos de limitação de armas nucleares (o SALT) com a União Soviética, o processo de paz no Vietnã (que lhe rendeu um Prêmio Nobel dividido com o principal diplomata norte-vietnamita), a presença constante em negociações no Oriente Médio (apelidada de “diplomacia de ponte aérea”) e o apoio ao Paquistão contra a Índia na guerra que resultou na formação de Bangladesh foram outros pontos altos desse período.
A debacle do governo Nixon em consequência dos escândalos políticos fizeram de Kissinger um personagem cada vez mais importante para o país e para o mundo. Em 1975, pesquisa do Instituto Gallup o apontou como a pessoa mais admirada nos EUA.
Ele passou do status de poderoso assessor para o de celebridade global. Seu casamento com Nancy Maginess, em 1974, recebeu cobertura de imprensa similar à do de um astro de cinema ou um monarca britânico. Frases que lhe foram atribuídas nessa época (como “o poder é o melhor afrodisíaco”) ajudavam a ampliar sua fama.
Kissinger manteve relação especial com o Brasil, em parte por razões explicáveis pela “realpolitik” (ele sempre reconheceu a importância estratégica do Brasil para os EUA no hemisfério ocidental,) em parte, talvez pela conhecida paixão que teve pelo futebol.
No poder, deve ter influenciado Nixon a proferir a famosa frase em 1972 (“Para onde o Brasil se inclinar, toda a América Latina se inclinará”, ao saudar o então presidente Garrastazu Médici, em Washington) e forjou vínculos de amizade com o chanceler do governo Geisel, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, “o mais substantivo interlocutor que tive na América Latina”.
O diálogo do todo-poderoso da política externa americana de 1969 a 1977 com o Brasil está muito bem documentado no livro “Kissinger e o Brasil”, de Matias Spektor (Zahar, 2009).
Numa de suas viagens ao país, em 1976, quando grandes divergências econômicas atritavam a relação binacional, ele ajudou a lhes dar um viés político, em que soluções seriam mais facilmente encontráveis.
No campo do futebol, apesar de fascinado pelos brasileiros (dizia que a seleção de 1982 foi o melhor time da história, que só não foi campeão por azar), teve boicotada por anos a sua ambição de levar a Copa do Mundo para os EUA por João Havelange (então presidente da Fifa), que se ofendeu em 1974 por não ter recebido grande atenção do então secretário de Estado durante o jogo Brasil e Holanda.
Os elogios e expressões de confiança no Brasil se mantiveram mesmo depois de sua aposentadoria como diplomata. No livro “Diplomacy”, de 1995, Kissinger é pródigo em boas palavras sobre o país, em contraste com críticas que faz ao México.
Fora do governo, Kissinger continuou a ser autor profícuo, com livros volumosos sobre política externa publicados periodicamente e artigos frequentes sobre os grandes temas internacionais, sempre recebidos com atenção e nem sempre aceitos consensualmente.
Em 2001, apoiou a guerra ao terror declarada por George W. Bush após os atentados terroristas de 11 de setembro. Em 2005, insistiu em público e privado com Bush para não sair do Iraque, apesar de todos os sinais de que a situação se deteriorava como a do Vietnã no início dos anos 1970, um claro distanciamento das posições de “realpolitik” que ele executara no governo.
Houve várias tentativas de fazer com que Kissinger respondesse na Justiça por ações cometidas por agentes oficiais americanos durante seu período como secretário de Estado, principalmente no Chile na época do golpe contra Salvador Allende e no início da ditadura de Augusto Pinochet, mas eles nunca prosperaram.
Em 1982, ele criou empresa de consultoria em relações governamentais chamada Kissinger Associates com Brent Scowcroft, colega na administração Ford. Em 1999, ele se associou a Mack McLarty, que havia sido chefe da Casa Civil no governo de Bill Clinton, para criar a Kissinger McLarty Associates.
As atividades da consultoria e seus livros, artigos e entrevistas o mantiveram como personagem público de primeira grandeza.
Ocasionalmente, foi chamado para desempenhar algumas ações para governos estrangeiros, como o da Indonésia, ou dos EUA, como em 2001, quando o então presidente Bush o nomeou presidente da comissão para investigar os atentados terroristas de 11 de setembro, cargo do qual renunciou por não aceitar revelar os nomes dos clientes de sua consultoria, como lhe foi exigido para verificar eventuais conflitos de interesse.