Jovens de periferias apostam nos games como plataforma de ascensão social

LUCIANO TRINDADE E HAVOLENE VALINHOS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Era para ser uma peneira em busca de novos talentos para o futebol, mas a pandemia de Covid-19 fez Igor Oliveira, 23, mudar de ideia. No começo de 2020, ele promoveu uma seletiva para formar um time de Free Fire na comunidade do Jardim Elba, que reúne 11 favelas na zona leste de São Paulo.

Montar uma equipe para o game mais popular no Brasil pôs o paulista e outros seis garotos dentro do cenário digital -espaço que ainda é restrito para muitos jovens que moram em periferias, mas que também tem sido uma plataforma de ascensão social para gamers e streamers de regiões carentes.

“Meu pai é um dos organizadores do futebol do complexo e me deu essa tarefa de fazer um time que nos representasse”, diz Oliveira. “Montamos e ganhamos o campeonato estadual de São Paulo disputado entre 48 favelas. Na Taça das Favelas, entre 1.296 times, disputamos com os 12 finalistas e ficamos em oitavo lugar “, orgulha-se.

Mais de 400 garotos participaram da peneira. Esse interesse reflete uma importante característica para a popularização do Free Fire: o jogo pode ser reproduzido em qualquer smartphone básico e não requer uma conexão de internet com muita velocidade, condições que facilitam seu acesso.

Mesmo assim, não são todos que podem jogá-lo. Cerca de 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à internet ou não têm nenhum acesso. Daqueles que pertencem às classes D e E já conectados, 85,1% usam a internet só pelo celular e com pacotes limitados, segundo dados do Cetic.br -o departamento do Comitê Gestor da Internet que monitora a adoção de tecnologias de informação há 15 anos.

Essa situação ficou mais evidente quando a necessidade de isolamento social devido à pandemia impediu que muitos jovens, principalmente os que moram em periferias, continuassem os estudos a distância. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 4,3 milhões de estudantes não tinham acesso à rede no início da crise sanitária. Destes, 4,1 milhões estudavam na rede pública de ensino.

Oliveira -que, além de fundador, é treinador do time e orienta as estratégias dos jogadores- conhece bem essa realidade e deseja transformar a vida dos jovens de sua equipe. Para isso, deixou recentemente a profissão de videomaker para se dedicar integralmente aos garotos.

“Eu conheço a história de vida e a família de cada jogador. Então, pretendo continuar com eles, pensando estratégias e focando para crescermos e subirmos para série A [da Liga Brasileira de Free Fire], pois essa também é uma oportunidade profissional para eles”, afirma.
Em Vigário Geral, favela da zona norte do Rio de Janeiro, Ricardo Chantilly identificou uma oportunidade semelhante e fundou, em 2019, a AfroGames, o primeiro centro de treinamento de esportes eletrônicos do país com sede em uma favela.

Até 2021, o local atendia mais de cem alunos. Neste ano, de acordo com Chantilly, o espaço será ampliado para 170 participantes. “Todos podem ter aulas de League of Legends, programação de jogos e Fortnite, além de aulas de inglês. Fora lanche, uniforme e equipamento de primeira qualidade.”

No ano passado, a organização montou o primeiro time de League of Legends, com os melhores alunos de 2019. A equipe, formada por cinco garotos e uma menina, conta com técnico, preparador físico e psicólogo. Todos os jogadores recebem um salário mínimo.

“Dois desses garotos são os únicos faturamentos formais da casa deles. As mães eram diaristas, os pais eram pedreiros, e, com a pandemia, foram mandados embora. Então, o único faturamento formal é com eles”, ressalta Chantilly.

Na esteira do Free Fire e de outros jogos, como Fifa e League of Legends, tornar-se um gamer profissional está entre os desejos de 96% dos jovens que moram em periferias em todo o país, segundo pesquisa do Instituto Data Favela em parceria com a Locomotiva e a Cufa (Central Única das Favelas).

“Os jogos eletrônicos têm crescido bastante, estão ganhando reconhecimento, principalmente nas favelas, porque, diferentemente do futebol, a favela não é vista como celeiro de talentos para esse tipo de esporte”, afirma o coordenador da Taça das Favelas de Free Fire, Marcus Vinicius Athayde.

Ele diz ainda que, durante um ano, foi disponibilizado um chip com Free Fire liberado para que cada um dos mais 7.000 jogadores da competição pudesse treinar sem limitação.

No cenário brasileiro, o maior expoente do jogo é justamente um atleta oriundo das favelas, Bruno “Nobru” Goes, 21. Nascido na comunidade paulistana Jardim Novo Oriente, ele é streamer e jogador, com mais de 33 milhões de seguidores, sucesso que alcançou após superar vários obstáculos.

“No início da minha carreira nos games, eu nem tinha celular, porque tinha sido assaltado”, lembra Nobru.

Para jogar, ele passou a usar o telefone de trabalho do pai. “Fazendo as coisas certas, muitos jovens também conseguirão seguir o mesmo caminho e mudar de vida”, afirma o paulista, que tem um faturamento entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões por mês apenas com suas lives na plataforma Twitch.

Jakeline Benites, 24, moradora da Vila Nhanhá, Mato Grosso do Sul, fez parte da equipe campeã da Taça das Favelas em 2021. Ela também deseja seguir carreira profissional como gamer, porém ainda não encontrou uma oportunidade que atenda sua necessidade, já que ela e o marido, Helden Alves, que é o treinador do time, têm duas filhas.

O casal trabalha atualmente entregando produtos vendidos em lojas online, mas a participação de ambos no torneio do ano passado possibilitou à família a chance de empreender.
Ela conta que o prêmio de R$ 60 mil foi dividido entre os sete jogadores do time e que utilizará a sua parte para começar um negócio próprio.

“Com a premiação, começarei a vender semijoias e pavê no pote. Também conseguimos comprar um guarda-roupa, um armário de cozinha e uma cama para as nossas filhas. Esse prêmio trouxe novas perspectivas para a nossa família. A gente trabalha para sobreviver e com esse valor extra será possível empreender.”

Jakeline diz que, nas viagens com o time para participar de campeonatos, entrou pela primeira de vez em um avião e se hospedou em um hotel de cinco estrelas. “O mesmo aconteceu com os outros jogadores. Eles também nunca tinham viajado de avião”, relata.

O cenário de jogos competitivos também tem sido uma plataforma usada por jovens para conquistar um espaço em áreas como a música. Foi assim, por exemplo, que o rapper Guxta, 19, conseguiu dar um salto em sua carreira.

Nascido e criado na Baixada Fluminense, ele fechou em 2021 parceria com a Loud -uma das maiores organizações de esportes eletrônicos do país, com cerca de 25 milhões de seguidores nas redes sociais- e passou a ser um dos produtores de conteúdo da empresa.

Desde então, já lançou três músicas e três videoclipes e conseguiu ajudar a mãe, que parou de trabalhar. Antes, ela era babá.

“Até o Natal de 2020, eu nunca tinha tido uma ceia na minha casa. Sempre faltava dinheiro para a minha mãe. A gente ficava abraçado e chorava, mas tinha fé. No ano que passou, consegui fazer uma ceia de Natal com toda a minha família, com muitos amigos”, conta. “É uma questão de acreditar.”

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