Indígenas criam livro didático em tupi-guarani para alfabetizar crianças em aldeia de SP

Preocupadas com a alfabetização de crianças indígenas, quatro professoras se uniram para criar um livro didático em tupi-guarani na aldeia Tapirema, em Peruíbe, no litoral paulista.

Segundo Guaciane Gomes, que é liderança na comunidade e há nove anos dá aula para indígenas, a falta de materiais para ensinar os mais novos dificulta não só o aprendizado, mas também a aproximação com a cultura. Um dos receios de Guaciane é que a língua se perca pela falta de suporte e incentivo.

Guaciane explicou que o livro foi produzido por três professoras indígenas e uma não indígena. A ideia foi sugerida pela professora Karen Villanova, que conheceu a aldeia Tapirema durante a produção de um documentário. Durante a gravação do filme, ela ouviu uma das educadoras se queixarem sobre a falta de material didático em tupi-guarani em escolas indígenas.

“Eu estava fazendo mestrado em educação, estudando questões intergeracionais, sobre a troca de conhecimento entre pessoas mais jovens e mais velhas. Foi a minha primeira experiência com um coletivo indígena, sempre digo para eles que eles mudaram a minha vida”, orgulha-se Karen.

Conforme explica Guaciane, a construção do material teve início no fim de 2019. Na produção, cada detalhe foi pensado e realizado pelas mãos de integrantes da comunidade. “Nós ficamos uma semana produzindo o livro. A Catarina, que é professora e anciã da aldeia, ajudou bastante na tradução. A Fabíola [educadora indígena] e o Mimby, que fez o grafismo, também ajudaram na construção desse material”, diz.

De acordo com a liderança da aldeia, dar aula em comunidades indígenas não é uma atividade fácil, porque a falta de materiais influencia no contato dos alunos com a língua. “A gente que tem que produzir os nossos conteúdos. Eu planejo minha aula e faço as atividades relativas à língua materna, então, esse livro surgiu não só para ajudar a minha sala de aula, mas todos os alunos da rede que aprendem tupi-guarani”, salienta Guaciane.

Guaciane relata que, há quatro anos, foi elaborado um livro de gramática na aldeia Piaçaguera, que também fica em Peruíbe. Embora o conteúdo tenha ajudado os profissionais, foi necessário criar um material direcionado à alfabetização das crianças. “Para nós, foi um ponto positivo, porque, até então, a gente escrevia como achávamos que era, e o livro ajudou as crianças a entenderem melhor as nossas palavras”, comenta.

O material didático é voltado a crianças em estágio de alfabetização, e conta com conteúdo baseado na cultura indígena. “O livro foi baseado em alguns elementos que a gente usa muito, como o cachimbo. Ele conta com pequenas histórias sobre comida, animais, e tem uma sequência de ordem alfabética. É um livro para ensinar a língua e estimular a criança a buscar traduzir as palavras que ela não conhece e pesquisar com uma pessoa mais velha”, detalha Guaciane.

Apesar de pronto, o livro ainda não foi publicado, por falta de recursos. “Nós enviamos para a Fundação Nacional do Índio [Funai], mas por enquanto ainda não tivemos uma resposta. Estamos esperando para ver se sai alguma coisa, e caso não saia, vamos ter que ver outras formas para ser publicado”, relata a liderança. Contudo, Guaciane reitera que todo o projeto é uma grande vitória.

“É muito gratificante, para nós, é uma vitória muito grande. Não só para nós, mas esse livro vai servir para vários indígenas. A gente fica muito preocupado em perder a língua tupi-guarani, porque a tecnologia afeta muito os jovens, e às vezes acaba até prejudicando. Eles não querem saber de estudar, da cultura, e isso é uma realidade das comunidades”, conclui.

Colaboração

Karen Villanova, que mora em Porto Alegre (RS), é a professora não indígena que deu a ideia para as professoras da aldeia e foi acolhida pela comunidade. Há 19 anos atuando na área, ela estava fazendo mestrado em educação no período em que conheceu os indígenas. Após sugerir a criação do livro, Karen decidiu mudar a proposta de sua pesquisa.

“Levei a proposta de mudar o direcionamento do mestrado, que era sobre trocas intergeracionais no contexto da língua inglesa, para essa observação das trocas entre os mais jovens e mais velhos indígenas, ao passo que se fazia um livro didático para ser utilizado na educação indígena, e o meu orientador topou”, conta Karen.

De acordo com a professora, ela se preocupou em deixar que todo o material fosse produzido em tupi-guarani e pelos indígenas. “Eu tinha a preocupação de que tudo fosse feito em tupi-guarani, e que fosse feito pelas pessoas da comunidade. Os textos foram feitos por elas [as professoras], a revisão e as ilustrações também”, relata.

Com relação à experiência, Karen diz que foi um período de grandes aprendizados. “Foi uma experiência muito enriquecedora como profissional, mas, principalmente, como pessoa. Aprender e vivenciar a rotina na aldeia, com as pessoas da aldeia, me trouxe muitas reflexões. Eu mudei bastante como profissional depois disso, para continuar trabalhando com coletivos indígenas. Ver a forma como as coisas são organizadas, como são feitas as reuniões, e como a vida pulsa de uma forma mais natural, mais humana dentro da aldeia, foi bem importante, bem emocionante”, finaliza.

 

Fonte: Progresso
Fotos: Arquivo Pessoal / Guaciane Gomes

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