SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O disparo de um míssil contra a casa de um chefe tribal deixou ao menos 13 mortos, incluindo crianças, próximo a Marib, no Iêmen, na quinta-feira passada (28). Um dia antes, 105 pessoas morreram em ataques que destruíram 13 veículos militares na mesma cidade. Na terça (27), foram 85. Na segunda (26), mais 105.
Só entre segunda e quinta-feira da última semana, 308 rebeldes houthis foram mortos no Iêmen, segundo a coalizão militar liderada pela Arábia Saudita, nesta que é para a ONU (Organização das Nações Unidas) a crise humanitária mais grave do mundo.
Dos 30 milhões de habitantes do país, 21 milhões precisam de ajuda, de acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários. A título de comparação, é como se 149 milhões de brasileiros não tivessem o mínimo para sobreviver.
A guerra civil do Iêmen, que dura quase sete anos, já deixou mais de 10 mil crianças iemenitas mortas ou mutiladas, segundo o Unicef (fundo da ONU para a infância). Ao todo, 11 milhões de crianças (ou seja, quatro a cada cinco no país) precisam de ajuda humanitária, 2 milhões estão fora da escola e 400 mil sofrem de malnutrição severa.
Mas quando foi a última vez que você ouviu algo sobre o Iêmen?
“Quando se fala em Oriente Médio, pensa-se em Israel, Líbano, Síria, Iraque. O Iêmen não é um lugar importante para as religiões, não teve diáspora para o Brasil, não possui petróleo, riquezas. A ausência desses elementos acaba fazendo dele um país menos importante, fora do mapa mental das pessoas”, diz o pesquisador libanês Danny Zahreddine, professor de relações internacionais da PUC Minas.
O Brasil, ainda assim, de certa maneira está presente nesse conflito. Relatório da ONU de 2017 apontou que a Taurus, maior fabricante de armas do país, vendeu armamento ao filho de um conhecido traficante de armas iemenita em 2015, três meses após um embargo a esse tipo de comércio. A empresa afirmou à época que seguiu os protocolos exigidos nas legislações brasileiras e internacionais.
Do outro lado, também se registrou o uso, por parte da coalizão militar liderada pelos sauditas, de lançadores de foguetes Astros II, fabricados no Brasil, que usaram munições cluster –armas de fragmentação banidas internacionalmente.
O atual conflito no Iêmen remonta a 2014, quando rebeldes xiitas do grupo houthi se insurgiram e tomaram o controle da capital, Sanaa, forçando a renúncia do então presidente Abd Rabbu Mansour Hadi, em janeiro de 2015.
Dois meses depois, uma coalizão militar de países do Golfo, liderada pela Arábia Saudita e com apoio logístico e de inteligência dos Estados Unidos, começou a atacar os grupos rebeldes. Em setembro daquele ano, Hadi voltou atrás em sua renúncia e passou a “governar do exílio”.
Os houthis apoiavam a volta ao poder do ex-ditador Ali Abdullah Saleh, que comandou o país de 1978 a 2012 –quando foi um dos líderes a cair na Primavera Árabe. Em dezembro de 2017, porém, Saleh rompeu com os insurgentes e foi morto dois dias depois.
Hoje, o Iêmen vive uma “proxy war”, uma guerra por procuração, segundo Monique Sochaczewski, especialista em Oriente Médio e professora do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa). “Começou com um supetão do [príncipe saudita] Mohammed bin Salman, que achou que resolveria o problema rapidamente”, diz. “Mas a ação durou muito mais do que o esperado e acabou trazendo o Irã, que apoia os houthis, para o conflito.”
Irã e Arábia Saudita representam grupos opostos no jogo de poder no Oriente Médio. O chamado crescente xiita –iranianos à frente, com Iraque e partes da Síria e do Líbano– se opõe aos interesses dos EUA e de Israel; no bloco liderado pelos sauditas estão os outros países do Golfo e o Egito governado por Abdul Fatah al-Sisi.
A brasileira Nathalia Quintiliano, 34, trabalhou para a ONU como oficial de monitoramento para o Iêmen por quatro anos, entre 2016 e 2019. Ela ficava baseada no Djibuti, pequeno país com menos de 1 milhão de habitantes do outro lado do estreito de Babelmândebe (portal das lágrimas, em árabe), que separa a África da Ásia na saída do mar Vermelho.
À época, a Arábia Saudita havia imposto um bloqueio naval, sob o argumento de que iemenitas recebiam armamentos por navios. Para resolver o impasse e liberar a ajuda humanitária a um país que precisa importar 90% de tudo o que consome, a ONU se comprometeu a fiscalizar as embarcações.
Enquanto Quintiliano esteve lá, uma colega foi sequestrada pelo Estado Islâmico, e um libanês que trabalhava para a Cruz Vermelha foi morto a tiros. Além da dificuldade de fiscalizar navios em alto-mar em meio a uma guerra, os trabalhadores ainda tinham que lidar com piratas da Somália, que atuam na região.
“É uma área bem movimentada, com pirataria, crime organizado, tráfico. Como é o único caminho de cargas que saem de parte do Oriente Médio para a Europa, passa muito dinheiro ali”, conta Quintiliano. A Marinha brasileira hoje lidera uma das missões que monitora a pirataria na mesma região.
Ela destaca ainda a quantidade de iemenitas que trabalhavam nos navios em condições análogas a escravidão e o fluxo de pessoas da África que se arriscavam em embarcações precárias para cruzar o estreito e tentar fugir por terra até a Arábia Saudita.
“É muito parecido com o que acontece no Mediterrâneo, com refugiados tentando chegar à Europa. Tem muito caso de embarcação que vira com todo mundo.”
Hoje, o conflito no Iêmen tem se concentrado em Marib, onde aconteceram os ataques da última semana reportados pela coalizão saudita. A cidade é um dos últimos redutos governistas que os rebeldes tentam tomar.
Agora vivendo na Turquia, Quintiliano diz que não vê uma saída breve para o conflito. “É uma guerra totalmente esquecida, em um país que já era muito pobre antes de tudo começar”, afirma. “Trata-se de uma catástrofe muito maior que a da Síria, em termos humanitários, mas que chama muito menos a atenção.”
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