Guerra da Ucrânia faz Suécia e Finlândia enfrentarem demônio de entrar na Otan

IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre os diversos abalos sísmicos decorrentes da Guerra da Ucrânia, um dos mais sensíveis politicamente atinge a Escandinávia, onde Suécia e Finlândia discutem abandonar uma neutralidade militar histórica e se unir à Otan, a aliança comandada pelos Estados Unidos.

Apesar de parecerem uma unidade e, ao fim, a decisão de um influenciará na do outro, o jogo é bastante diferente para Estocolmo e Helsinque no debate. Tudo indica que ambos acabarão na Otan, para o desgosto de Vladimir Putin, mas o processo decisório sueco é mais intrincado.

O Partido Social Democrata, dominante na política sueca há décadas, está em consultas sobre o tema, assim como o Parlamento -que vai divulgar seu estudo acerca da questão na próxima sexta (13). “Será algo mais como prós e contras, não uma decisão”, diz o analista de segurança Mikael Holmström, do jornal Dagens Nyheter.

O demônio da entrada na Otan, diz Holmström, está domado na elite sueca. “Já o cidadão ordinário mal pensa nisso, porque o debate público foi desencorajado pelos sociais-democratas, historicamente contrários à adesão”, diz.

A Folha falou com outro Mikael, esse de sobrenome Andersson, um analista de sistemas de Estocolmo que talvez se encaixe na definição de cidadão ordinário dada por seu xará. “A guerra é terrível e acho que devemos entrar na Otan para nos proteger. Mas eu penso que no mesmo dia seremos alvo da Rússia”, diz.

Moscou é atenta a essa linha de raciocínio, e o Kremlin já fez questão de deixar público que uma entrada dos nórdicos na Otan levará ao posicionamento de armas nucleares perto de seu território. Ou seja, em Kaliningrado, o encrave russo entre Lituânia e Polônia, ou talvez na Belarus do ditador Aleksandr Lukachenko.

É retórica, dado que tais armas já podem estar em Kaliningrado, como atesta a Federação dos Cientistas Americanos, entidade referência no tema. Mas tem seu efeito.

Seja como for, Holmström considera que tudo indica o fim de 200 anos de neutralidade formal da Suécia, que veio após o antigo reino expansionista perder o que hoje é a Finlândia justamente para os russos, cuja terra havia sido invadida e tomada por Estocolmo no século 18.

É um processo natural. Nos últimos anos, o governo sueco aumentou suas metas de gasto militar visando justamente conter a ameaça russa. A partir de 1994, sua cooperação com a Otan cresceu exponencialmente, embora seu efetivo armado tenha caído de 850 mil homens para 30 mil (incluindo voluntários e paramilitares) e o dispêndio bélico, de 2,5% do PIB para 1%. “Ainda assim, a Rússia sabe desde os anos 1950 de que lado estamos”, diz o analista.

A situação é algo diversa na vizinha Finlândia. No inverno de 1939 a 1940, o país foi palco de uma invasão soviética não muito distante no discurso em Moscou hoje -Helsinque acabou lutando até 1944 ao lado da Alemanha nazista contra os comunistas, mas ao fim acertou-se com os Aliados, guerreou contra Berlim e pagou como multa 10% de seu território.

A política resultante desse trauma foi o estrito não alinhamento durante a Guerra Fria, substituído por uma progressiva integração à Europa depois de 1991, mas sempre evitando o palavrão aos ouvidos russo: entrar na Otan, um dos motivos colocados por Putin para o ataque ao vizinho.

Agora, com a invasão da Ucrânia, o clima no país mudou e a revisão da política será anunciada no dia 12 pelo presidente Sauli Niinistö. Com apoio popular alto, acima de 60%, a adesão é dada como certa. Não menos porque há diferenças na postura de defesa em relação à mais poderosa Suécia.

Estocolmo tem menos soldados que Helsinque, mas uma indústria bélica altamente sofisticada, que vende caças para o Brasil e produz de submarinos ao NLAW, a arma antitanque que leva terror às forças de Putin na Ucrânia. Resquício de sua postura altiva na Guerra Fria, a militarização do país surpreende visitantes que esperam uma pacata e pacifista terra nórdica.

Já a Finlândia é mais exposta, até por compartilhar 1.300 km de fronteiras terrestres, ainda que geladas e inóspitas, com a Rússia. “Os finlandeses sempre se apoiaram em duas pernas, os EUA e a boa relação com a Rússia. Agora, viram que não dá para confiar em Putin”, diz Holmström. “No mesmo dia em que a invasão da Ucrânia começou, Helsinque foi atrás da Otan.”

Sua adesão poderá ter o condão de tornar a decisão sueca um fato consumado. “Há muita cooperação militar entre os dois países, e se a Suécia ficar fora da Otan, estará isolada no norte da Europa. Será um alvo fácil para provocações russas”, afirma o analista.

Com efeito, desde que a guerra começou houve ao menos dois episódios em que o espaço aéreo sueco foi violado por aviões russos -num deles, a imprensa do país nórdico diz que havia armas nucleares a bordo de bombardeiros Su-24 escoltados por caças Su-27.

Apesar de todo o burburinho, há um fato que costuma passar despercebido das análise sobre o fim da neutralidade nórdica: na realidade, ela já foi algo descartada quando Suécia e Finlândia aderiram juntas à UE (União Europeia), em 1995.
“Se um Estado-membro é vítima de agressão armada em seu território, os outros Estados-membros devem ter uma obrigação de ajuda e assistência por todos os meios a seu dispor”, diz o artigo 42.7 do Tratado da União Europeia.

O texto até fala que, se forem membros da Otan, os Estados devem seguir “as fundações de sua defesa coletiva e o fórum de sua implementação”, mas objetivamente o que se diz que é suecos e finlandeses já gozam de certas prerrogativas de proteção sendo membros da UE.

Evidentemente, a coisa muda de figura com o artigo 5º da carta da Otan, que prevê a defesa mútua de membros sob ataque meramente porque colocam os Estados Unidos, maior potência militar da história, na equação.

Há, por fim, considerações sobre o impacto da provável adesão dos países, que afetam inclusive o Brasil. A indústria bélica sueca será beneficiada ou engolida pela Otan? “Eu vejo vantagens, como a entrega dos NLAWs aos milhares para a Ucrânia mostram”, diz Holström.

Mas e os caças Gripen, adotados em sua nova geração por Brasil e Suécia, e cuja manutenção nas próximas décadas seria favorecida por mais clientes externos, como ficariam? Afinal de contas, o F-35 americano já derrubou o sueco em duas competições importantes recentes, na própria Finlândia (64 aviões) e no Canadá (88).

“Eu creio que quem compra o F-35 quer uma relação próxima dos EUA, e isso não irá mudar”, afirmou o analista, não sem razão. Até a Alemanha, proponente da independência militar europeia, anunciou a compra do modelo após a crise na Ucrânia.

O desfecho da novela nórdica será indicado, mas talvez não resolvido, nesta semana. O debate sueco deve continuar até o dia 24, quando os sociais-democratas divulgarão sua posição, de olho na cúpula da Otan no fim de junho.

Ambos os países querem que a aliança forneça garantias de segurança durante o processo de adesão, que leva de oito meses a dois anos, temendo que os russos aprontem algo durante a análise. A Otan já disse que tais medidas podem ser combinadas, o que não tirará da alta tensão o interregno entre uma posição e outra.

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