Gamers vazaram documentos militares confidenciais para vencer discussão

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Usuários de um fórum do videogame de guerra “War Thunder” precisavam provar que estavam certos a respeito da velocidade da movimentação de uma arma num tanque, ou de detalhes no funcionamento de um míssil. Para isso, vazaram documentos confidenciais de Forças Armadas de diferentes países pelo menos seis vezes desde 2021.
O último vazamento, com informações a respeito do caça americano F-15E, aconteceu no dia 18 de janeiro -apenas dois dias depois que um outro usuário, cujo apelido é “spacenavy90”, publicou um comentário na página 48 de um post intitulado “F-16: Histórico, Performance e Discussão”.

Nesta publicação, do dia 16, o jogador escreveu: “encontrei algo interessante na minha pesquisa”. Em anexo, um documento restrito do Departamento de Defesa americano com especificações técnicas do caça F-16.

A natureza sigilosa do documento foi rapidamente identificada por outros usuários e pelos moderadores do fórum, que deletaram o post. Mas o estrago já estava feito: era a sexta vez que informações confidenciais sobre equipamentos militares eram vazados nos fóruns do “War Thunder”.

Os vazamentos, que também já atingiram equipamentos militares de Reino Unido, França e China, são feitos por jogadores que ou buscam maior verossimilhança e melhorias no jogo ou para ganhar discussões a respeito de detalhes técnicos dos veículos. Nestes casos, a fonte do argumento utilizada foi um documento confidencial.

No caso do vazamento a respeito do F-16, o usuário alegou que não sabia que se tratava de informação sigilosa, e que ele não seria estritamente confidencial, e sim restrito -gradações diferentes na escala de confidencialidade de papéis do governo americano. Ainda assim, de acordo com o código penal dos EUA, divulgar segredos do país pode acarretar uma pena de até dez anos de prisão e multa.

Um dos principais assuntos do fórum onde os documentos foram vazados é discutir se determinados veículos que aparecem no jogo devem ser “buffados” (ter sua performance melhorada) ou “nerfados” (piorada), uma discussão comum em jogos online. “War Thunder” é um MMO, um jogo com dezenas de jogadores se enfrentando simultaneamente no qual é possível pilotar veículos de guerra como tanques, aviões ou navios que foram ou ainda são usados pelas Forças Armadas de diversos países.

A diferença é que “War Thunder” é um jogo para quem também gosta dos aspectos técnicos desses veículos. Por isso, o game tenta acertar como eles funcionam com precisão, o que gera discussões entre os entusiastas, como por exemplo a velocidade com a qual a arma principal de um determinado tanque se movimenta -questão que deu origem a outro vazamento, esse em outubro de 2021, quando um usuário publicou documentos sigilosos do tanque francês Leclerc pra provar que estava certo.

O jogo é repleto de detalhes que buscam levar uma experiência realista ao jogador. Para destruir inimigos, por exemplo, não basta atirar a esmo nos veículos até esgotar seus pontos de vida. Como há neles regiões mais e menos sensíveis, a destruição causada vai depender da distância e do ângulo do tiro.

Conforme o jogador vai conquistando objetivos e vencendo partidas, ele ganha moedas usadas para comprar novos veículos. Os mais básicos são modelos reais usados na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, enquanto os mais avançados, que exigem mais tempo de jogo, são do final do século XX.

Na plataforma Steam, para PC, “War Thunder” está entre os dez jogos com maior número de jogadores diários, com cerca de 73 mil. O título divide o espaço com “Grand Theft Auto V”, “Counter Strike: Global Offensive”, “Call of Duty: Modern Warfare II” e “FIFA 23”.

Levando em conta outras plataformas -o título também está disponível para PlayStation e Xbox-, o site activeplayer.io estima cerca de 900 mil jogadores ativos diariamente.

Mas não é só porque “War Thunder” é feito para nerds que adoram discussões militares que os vazamentos têm acontecido. Muitos dos jogadores dizem ser parte de Forças Armadas dos seus países na vida real. Em alguns minutos navegando pela comunidade de língua alemã nos fóruns do “War Thunder”, a reportagem da Folha encontrou um usuário que diz ser treinado para pilotar tanques Leopard 1 e Leopard 2 –o mesmo tipo de veículo que a Alemanha anunciou recentemente que vai enviar à Ucrânia na guerra contra a Rússia.

A empresa que desenvolve o “War Thunder”, a húngara Gaijin Entertainment, proíbe que documentos reais mais recentes do que 1990 sejam compartilhados nos fóruns. Em entrevista ao site especializado em aviação Aerotime Hub, o fundador da Gaijin, Anton Yudintsev, disse que o estúdio não usa informações sigilosas para fazer alterações no jogo, então vazar documentos nos fóruns não faria sentido -além de ser ilegal.

O primeiro caso conhecido de um vazamento do tipo aconteceu em julho de 2021. Um usuário reclamando que o tanque britânico Challenger 2 não estava corretamente representado no jogo publicou trechos editados do manual do veículo para parecer que não eram confidenciais. O post foi apagado depois que a Gaijin entrou em contato com o Ministério da Defesa do Reino Unido e confirmou que o documento era, de fato, sigiloso.

Dos seis casos de vazamentos até aqui, cinco estão relacionados a veículos que existem no jogo. O mais recente era sobre um caça que ainda não faz parte do “War Thunder”, o F-15E.

A repercussão dos vazamentos nas redes sociais gerou um boato no Reddit de que a Raytheon Technologies, uma das principais indústrias militares dos EUA, estaria verificando se candidatos a vagas de emprego jogam “War Thunder”, sob o risco de serem desclassificados -a empresa precisou vir a público desmentir a história.

“Apenas analisamos a escolaridade, os empregos e o histórico criminal de uma pessoa ao contratar. Nunca examinamos quais videogames uma pessoa joga e não consigo imaginar um caso em que teríamos uma preocupação com qualquer jogo”, disse um porta-voz da Raytheon ao site Sports Illustrated.

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