SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Você poderia por gentileza salvar a minha vida? As pessoas sabem que sou uma menina solteira, formada em medicina, que trabalhei com europeus e americanos fazendo pesquisas sobre saúde da mulher. Quebrei as regras conservadoras da minha sociedade.”
A súplica desta afegã de 26 anos chegou a Phyllis Chesler por meio de um amigo ativista em comum, do Reino Unido. “Encontrei um lugar excelente na Índia, onde ela trabalharia num orfanato para meninas deficientes que uma querida amiga fundou em Calcutá”, diz Chesler, 80.
Não deu certo. Após Cabul capitular para o Taleban, não teve mais notícias da médica que recusou pedidos de casamentos de parentes para poder continuar a exercer sua profissão. “Não tenho conseguido entrar em contato com ela por telefone ou e-mail.”
Professora emérita de psicologia na Universidade de Nova York, Chesler é uma feminista influente nos EUA. São dela estudos pioneiros sobre como mulheres foram historicamente associadas à loucura por não cumprirem os papéis domésticos e matrimoniais que se esperavam delas.
Escritos mais recentes levaram a médica afegã a procurá-la. Contava com a empatia de Chesler. Em 2013, ela escreveu “An American Bride in Kabul” (uma noiva americana em Cabul), uma autobiografia que começa assim: “Uma vez morei num harém no Afeganistão”.
Criada numa família de judeus ortodoxos em Nova York, Chesler tinha 18 anos quando, no fim dos anos 1950, apaixonou-se por um rapaz que compartilhava sua paixão por existencialismo e nouvelle vague. Abdul-Kareem era um muçulmano ocidentalizado que dizia querer ser uma força política modernizadora em seu Afeganistão natal.
No livro, ela relata a experiência de viajar com o marido para a nação asiática e ver seu passaporte ser confiscado pouco após aterrissar. Sem ajuda da embaixada americana, que dizia nada poder fazer por uma mulher sem documentação, foi viver na casa do sogro poligâmico, confinada a assistir à sogra costurar e bater nas serventes, mesmo em uma Cabul que respirava ares mais progressistas à época.
Seu marido dizia que só não a queria zanzando pelas ruas sozinha por temer que a jovem americana de jeans e tênis fosse sequestrada e estuprada. “Descobri rapidamente que seu pai tinha três esposas e 21 filhos e que eu deveria morar com a mãe dele”, conta ela à Folha de S.Paulo. “Eu não tinha permissão para sair sem um acompanhante masculino e uma parente mulher. Não podia deixar o país porque eles haviam removido meu passaporte, algo que acontecia com todas as noivas estrangeiras. Era, portanto, uma prisioneira num purdah [conceito para definir a prática de esconder mulheres por meio de véus islâmicos] muito elegante.”
Chesler ficou seis meses cativa e voltou para os EUA valendo-se de uma desculpa médica. Estava grávida e com uma forte disenteria. Como precisava de melhores cuidados, recebeu a permissão para deixar o país. Diz que beijou o chão do aeroporto JFK, em Nova York, ao desembarcar “na terra das livrarias”.
Mas aquele era o Afeganistão anterior à invasão soviética e a décadas de conflitos internos que, em 1996, terminaram com a tomada de poder pelos talebans. Esse simulacro de califado islâmico medieval durou até 2001, quando os anfitriões de Osama bin Laden e sua Al Qaeda foram escorraçados por forças americanas e britânicas após os atentados que arquitetaram para o 11 de setembro daquele ano.
Sua experiência em Cabul, reconhece Chesler, é fichinha perto do que as afegãs passaram nos cinco anos de regime taleban. Trabalhar, estudar ou ter contato com homens que não fossem da família? Nem pensar.
“Entre os abusos mais sistemáticos e destrutivos do Taleban contra as mulheres estava a negação da educação”, afirma a ONG Human Rights Watch. “Durante seu governo, eles proibiram quase toda a educação para as meninas e as adultas.”
Sair de casa sem burca, o véu que cobre da cabeça aos pés, era também impensável, até porque “o rosto de uma mulher é a fonte da corrupção”, como explicou um porta-voz do grupo à época. Havia ainda um departamento “de promoção da virtude e prevenção do vício”, conhecido como polícia moral, para colocar desviantes na linha. Um de seus decretos previa cobrir de tinta preta janelas do primeiro andar, para que quem estivesse na rua não tivesse qualquer vislumbre das mulheres dentro de casa.
No primeiro ano no comando, os talebans fecharam salões de beleza e deceparam parte do dedão de uma mulher com esmalte nas unhas. As punições às infratoras incluíam açoitamentos e execuções públicas.
Quando a médica que tenta escapar de Cabul procurou Chesler, a marcha dos talebans já parecia irrefreável. “Ouvi dizer que, em algumas províncias onde o Taleban assumiu o controle, meninas solteiras são obrigadas à força a se casar [com membros do movimento]”, a afegã relata em mensagem publicada pela americana. “Alguns pais decidiram ‘sacrificar’ suas filhas, entregando-as para o matrimônio apenas para obter a satisfação do Taleban, esperando que assim estejam protegidos dos próximos ataques.”
Ativistas e ONGs estrangeiras têm recebido notícias de afegãs que pagam contrabandistas para levá-las a países vizinhos como Paquistão, Índia e Tajiquistão. “São lugares hostis e misóginos. Elas preferem um futuro desconhecido a ficar e enfrentar o Taleban.” O avanço dos fundamentalistas pelo território impulsionou notícias como a da jovem de 21 anos morta a tiros por usar uma burca considerada justa demais. O assassinato foi atribuído à facção fundamentalista, que negou sua autoria.
A feminista veterana reconhece que a médica é uma entre “milhares de mulheres, dissidentes e homossexuais” que agora entram na mira do grupo que volta ao controle. E nem ela conseguiu se salvar, ao menos por enquanto. Deu de cara com muros burocráticos. O governo britânico, segundo Chesler, recusou-se a colocar a afegã num voo para fora do país.
Uma ONG norueguesa para a qual a médica inclusive já trabalhou disse que a ajudaria, “mas apenas depois de ela magicamente aparecer na Noruega”, ironiza Chesler. “Um alemão ofereceu fundos e talvez um jato executivo, mas ele, também, não conseguiu fazer com que o governo do seu país ajudasse.”
A decisão de remover tropas ocidentais do Afeganistão após 20 anos de guerra, para ela, foi precipitada, “para não dizer horrível”. “Sabemos o que acontecerá em seguida, o que já está acontecendo. Serão incontáveis massacres, execuções, amputações a mando da sharia [a lei islâmica] e apedrejamentos.”
Para a ex-noiva americana em Cabul, ao desistir do conflito, o presidente dos EUA, Joe Biden, mostra não ter apreço pelas afegãs. “Embora os EUA tenham ido ao Afeganistão para encontrar Bin Laden, o empoderamento das mulheres foi possibilitado pela presença de botas ocidentais”, diz. “A ilusão de que poderíamos moderar a barbárie medieval foi colocada de lado. A probabilidade de o Taleban treinar jihadistas de todos os lugares é maior do que antes. Genghis Khan triunfou sobre a América de Biden.”
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