SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Estado Islâmico reivindicou nesta segunda-feira (29) ataques realizados no norte de Moçambique que culminaram na tomada de Palma, deixando dezenas de mortos e ao menos cem desaparecidos, enquanto moradores tentam fugir da região.
A cidade na província de Cabo Delgado, região que há mais de três anos vive um intenso conflito, foi tomada por insurgentes no sábado (27). O governo confirmou neste domingo (28) que dezenas morreram, incluindo sete no comboio oficial que sofreu uma emboscada durante uma tentativa de deixar a região.
Segundo relatou à agência de notícias Reuters uma autoridade diretamente envolvida nos esforços oficiais para retomar Palma, os confrontos seguiram nesta segunda.
O Estado Islâmico reivindicou os ataques por meio de sua agência de notícias, a Amaq, afirmando que assumiu o controle da cidade após dias de confrontos com forças de segurança. O grupo diz ter matado ao menos 55 pessoas, entre elas soldados, além de ter destruído e tomado prédios, incluindo fábricas e bancos.
Pelo menos um sul-africano estava entre os mortos, segundo a Reuters. O jornal britânico The Times informou que um cidadão britânico havia morrido. O número de vítimas, porém, ainda é incerto.
Há relatos de que grande parte do município de 75 mil habitantes tenha sido destruído e de que havia cadáveres nas ruas no sábado, segundo reportado por fontes à agência de notícias AFP, entre as quais membros da ONG Human Rights Watch.
Palma parecia nesta segunda uma cidade fantasma, enquanto milhares tentavam fugir do local. A cidade está próxima a bilionários megaprojetos para extração de gás, entre eles o do grupo francês Total, que suspendeu novamente as operações após as ações.
Entre 6.000 e 10.000 pessoas estavam abrigadas dentro do ultraprotegido complexo da multinacional europeia ou tentando obter acesso, de acordo com uma pessoa envolvida em operações de evacuação ouvida pela agência de notícias AFP.
Uma balsa partiu no sábado com cerca de 1.400 trabalhadores e moradores de Palma com destino a Pemba, capital da província de Cabo Delgado, a 240 km de distância.
Muitas canoas e barcos tradicionais, carregados de civis, continuavam a chegar à cidade. A polícia e o Exército estiveram neste domingo na praia principal de Paquitequete, em Pemba, impedindo o acesso de jornalistas, informou um fotógrafo da AFP.
No porto da capital, parentes dos desaparecidos esperavam por notícias. “Não tenho tido contato com a minha família desde quarta-feira, a minha mulher, os meus filhos, a minha mãe, os meus irmãos”, disse Patricio Amade, morador de Pemba, à agência de notícias portuguesa Lusa.
A Lusa informou ainda que centenas de pessoas que fugiram de Palma chegaram à fronteira com a Tanzânia depois de passarem dias caminhando pelo mato para alcançar um lugar seguro. A polícia do país vizinho, no entanto, afirmou à Reuters que até agora não tinha visto pessoas de Moçambique tentando entrar em seu território.
Fontes de segurança ouvidas pela Reuters afirmaram que helicópteros contratados pelo governo também estão resgatando as pessoas.
Segundo Martin Ewi, do Instituto de Estudos de Segurança de Pretoria, mais de cem pessoas ainda não foram localizadas. Cerca de 12 caminhões carregados de civis que fugiam de um hotel em Palma estão desaparecidos desde sexta (26). “Provavelmente, várias pessoas foram mortas tentando escapar do hotel Amarula quando seu comboio foi atacado”, afirmou à AFP a diretora regional da Human Rights Watch, Dewa Mavhinga.
Desde outubro 2017, os extremistas da al-Shabaab, que juraram fidelidade ao Estado Islâmico, têm saqueado vilarejos e cidades em diferentes províncias, o que provocou o êxodo de quase 700 mil pessoas, segundo a ONU.
O conflito em Cabo Delgado se estende pelo litoral norte de Moçambique, de Pemba até Palma, na fronteira com a Tanzânia. Segundo o pesquisador da Anistia Internacional para Moçambique e Angola David Matsinhe, os insurgentes são jovens, em sua maioria do sexo masculino, nascidos na província de maioria muçulmana em um país com predominância católica.
O funcionário da Anistia Internacional explica que os insurgentes são fruto de um longo período de exclusão política, econômica e social. Após séculos sob controle português, Moçambique conquistou sua independência em 1975. Nesses mais de 45 anos como um Estado livre, porém, a região de Cabo Delgado foi ignorada pelo governo central, afirma o pesquisador.
A população local tinha como base de sua sobrevivência os recursos naturais. Para Matsinhe, o conflito se formou quando o governo central descobriu a existência das reservas de gás e começou a explorá-las sem oferecer desenvolvimento econômico e social para os moradores da região.
As multinacionais que possuem projetos em Cabo Delgado, por sua vez, não empregam a população local, diz o pesquisador, mas moçambicanos de outras províncias ou pessoas de fora do país.
Para o bispo brasileiro dom Luiz Fernando Lisboa, que estava alocado em Pemba e ajudou a dar voz às vítimas do conflito, a associação do al-Shabaab ao Estado Islâmico é uma “capa religiosa para uma guerra que não é religiosa, uma guerra que tem como principal motivo a economia”. O megaprojeto para extração de gás liderado pela francesa Total, por exemplo, é avaliado em US$ 20 bilhões (R$ 115,3 bilhões na cotação desta segunda).
Antes dos ataques a Palma, os confrontos já somavam 2.658 mortos, dos quais 1.341 são civis, de acordo com dados mais recentes do Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados –que não incluem as ações da última semana.
A Anistia Internacional, em um relatório publicado no início do mês, diz que o governo de Moçambique também é um ator da violência contra moradores da região. Após a publicação do documento, a agência Reuters fez pedidos de comentários ao governo, que não respondeu.
Segundo o levantamento, há ainda a atuação de uma empresa militar privada, a Dyck Advisory Group, originária da África do Sul, contratada pelo governo, o que deixa a população de Cabo Delgado presa num triângulo de violência.
Somam-se à violência e ao trauma as condições precárias que centenas de milhares de deslocados internos precisam enfrentar. Nas cidades de Niassa, Nampula e Pemba, essas pessoas vivem sem comida e sem água, o que dificulta uma das medidas básicas para evitar a propagação do coronavírus: lavar as mãos.
Com a superlotação nos campos de acolhimento, também é difícil manter qualquer tipo de distanciamento social. Assim, além da Covid-19, há também o aumento dos casos de malária. No aspecto social, muitas crianças não frequentam a escola há mais de três anos, quando o conflito estourou.
O confronto começou a ganhar projeção internacional no ano passado, em parte devido às denúncias feitas pelo bispo brasileiro.
Os EUA, por exemplo, que declararam o al-Shabaab uma organização terrorista devido à ligação com o Estado Islâmico, anunciaram em 15 de março o treinamento de fuzileiros navais moçambicanos por forças especiais americanas durante dois meses. Segundo afirmou a representação de Washington em Maputo, o país irá providenciar ainda auxílio médico e equipamentos de comunicação para ajudar no combate a insurgentes.
Após os recentes ataques, a ONU condenou as ações e ofereceu “apoio ao governo de Moçambique nos esforços para proteger os civis, restabelecer a estabilidade e levar à Justiça os autores desses atos odiosos”, declarou o porta-voz da organização, Stephane Dujarric.
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