Entenda por que as mulheres estão bebendo mais na TV e o que isso quer dizer hoje

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Imagine a cena. Junto a duas crianças, um homem entra num bar cheio de mulheres para pedir ajuda. Elas, que conversam e bebem à vontade, interrompem a contragosto a happy hour para chutar – em sentido figurado e literal – o penetra dali.

A sequência está no filme “Os Resultados do Feminismo”, da cineasta francesa Alice Guy, que imagina como seria a sociedade caso as mulheres se comportassem como homens, e os homens, como mulheres. Mesmo falando de um tema atual, a sátira, um curta-metragem de pouco mais de seis minutos em que o bar é o cenário central, data de 1906.

Se hoje, em especial depois da série “Sex and the City”, que acaba de anunciar uma temporada inédita depois do sucesso estrondoso que fez na virada do milênio, é natural ver grupos de amigas bebericando nos balcões no cinema e na TV, no início do último século não era.

Mulheres que bebem já foram sinal de depressão, promiscuidade e também fracasso nas telas mundo afora ao longo do século 20. Mas agora, no momento em que o grupo de nova-iorquinas que glamorizou ter uma taça na mão volta às telas, o cenário é outro – elas nunca beberam tanto em cena.

Segundo a revista canadense Maclean’s, até os anos 2000 não era tão comum ver personagens bebendo álcool em quantidades excessivas na TV, o que mudou nos últimos anos. Enquanto comerciais têm regras mais restritas para mostrar o consumo de bebidas, protagonistas de séries e filmes podem, sem restrições, beber o quanto bem entenderem – o que pode ter passado para trás os cafés e chás dos encontros de amigos em “Friends” e “Seinfeld”, por exemplo.

Sejam mulheres poderosas, caso de Olivia Pope em “Scandal”, personagens que nada veem de interessante na vida, como Fleabag, ou até as que beiram o alcoolismo, como Beth Harmon em “O Gambito da Rainha”, os estereótipos de gênero parecem cair e a relação entre as mulheres e o álcool ficam cada vez mais complexas.

O fato de a bebida frequentar cada vez mais cenas com mulheres cresce junto ao aumento do consumo dela na vida real. Nos Estados Unidos, uma pesquisa do National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism mostrou que mulheres tomando quantidades consideradas perigosas de álcool cresceu desde 1999 –o número de mortes relacionadas ao álcool nesse grupo foi de 7.662 naquele ano para 18.072 em 2017. O Brasil acompanha a tendência.

Algumas personagens em obras icônicas do século passado, no entanto, mostram como esse caminho foi longo. Em 1930, por exemplo, Marlene Dietrich, como a cantora de cabaré Lola-Lola, dividia copos -e outras coisas- com Emmil Jannings no alemão “O Anjo Azul”, filme que marcou o nascimento da atriz como mulher sedutora e perigosa aos olhos de Hollywood.

Mais adiante, em “A Malvada”, de 1950, é possível ver estrelas como Bette Davis e Marilyn Monroe com taças em punho num evento social – onde, inclusive, Davis comete excessos ao usar drinques como válvula de escape para um momento de angústia.

Segundo Nina Giácomo, pesquisadora da história do cinema na Escola da Comunicações e Artes da USP, a bebida aparece no curta de Alice Guy em 1906 como um símbolo de ocupação do espaço público, sociabilidade, poder e liberdade masculina.

Ela afirma que nas obras das décadas de 1910 e 1920 a relação entre a mulher e o álcool podia ter um teor melodramático e moralista, muitas vezes retratando a mulher como vítima – de um marido alcoólatra, por exemplo. Mas a produção de Guy é de um tempo “mais anárquico”, antes de a sociedade começar a condenar o uso de drogas e bebidas – a Lei Seca americana, por exemplo, entrou em vigor em 1920 -, e essas substâncias apareciam no cinema em geral como ferramenta cômica.

Entre os vários significados que consumir a bebida ganharam, um dos primeiros era como ferramenta de caracterização de mulheres que não eram exatamente exemplos segundo a bússola moral da sociedade – caso da Lola-Lola de Marlene Dietrich e da diva quarentona Margo Channing, vivida por Bette Davis.

O público logo veria Audrey Hepburn, como uma adorável prostituta, dar uma animada festa em seu apartamento em Manhattan em “Bonequinha de Luxo”, de 1961, e Elizabeth Taylor e Sandy Dennis encherem a cara para encarar o pesadelo matrimonial de “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”, de 1966.

É só a partir dos anos 1980 que começamos a ver mais as mulheres bebendo em grupos de amigas para se divertir, como em “Como Eliminar Seu Chefe”, de 1980 – apesar de a produção também mostrar uma personagem que bebe escondida no trabalho–, ou em “As Bruxas de Eastwick”, de 1987.

A confirmação da naturalização da mulher no bar com as amigas na mídia – e não no cabaré, num evento social ou escondida em casa –, se deu em 1998, com a estreia de “Sex and the City”. Até moda coqueteleira a série lançou, com o cosmopolitan.

Desde o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, foram várias as protagonistas criadas com uma relação intensa com o álcool. No seriado da HBO, as mesas e balcões de bares nova-iorquinos são cenário da procura de amores, de momentos de diversão entre mulheres e de tensões.

Na mais recente “Game of Thrones”, de 2011, não é difícil lembrar Cersei Lannister com sua taça de vinho. A bebida também é um dos acessórios favoritos de Alicia Florrick em “The Good Wife”, de 2009, e, claro, presença constante nos momentos em que Olivia Pope está fora dos corredores presidenciais em “Scandal”.

De acordo com o historiador Rafael Morato Zanatto, as diferentes representações que foram aparecendo no cinema e na TV acompanham as mudanças sociais de cada época, e não é exclusiva das personagens femininas quando o assunto é álcool.

Ele mostra numa pesquisa que a Lei Seca nos Estados Unidos, por exemplo, incidiu nos discursos dos filmes antes e depois de ser implementada. Enquanto alguns títulos reforçaram um discurso proibicionista, apoiando a lei, outros foram feitos para pressionar o abandono da medida, extinta em 1933.

“Como isso vai ser tratado ao longo do tempo vai acompanhar as mudanças da nossa sociedade”, afirma Zanatto. “O que há hoje em relação ao álcool é uma concatenação do cinema com as discussões sobre a redução de danos, sobre a saúde pública”, afirma.

As mudanças da relação entre as mulheres e o álcool também apareceram nas novelas brasileiras, mas no caso mais grave que o consumo da bebida pode atingir – o alcoolismo.

Esther Hamburger diz que Heleninha Roitman, a personagem de “Vale Tudo”, de 1988, é uma das poucas mulheres que vivem essa questão – segundo a pesquisadora, de maneira geral, o alcoolismo é um atributo masculino.

Interpretada por Renata Sorrah, Heleninha era uma artista visual e vivia mais num ambiente doméstico, em contraponto a sua mãe, Odete, uma executiva à frente de um império da aviação. “O alcoolismo era, e isso também em personagens masculinos, um índice de fracasso social e profissional”, afirma Hamburger.

O perfil de uma mulher alcoólatra já é diferente em “Mulheres Apaixonadas”, exibida 15 anos depois de o público conhecer Heleninha. “Ela é uma mulher profissional realizada e que entra em crise existencial primeiro conjugal e talvez a bebida aqui sinalize uma indisposição de enfrentar as incertezas, o risco”, diz a professora, sobre a personagem Santana, interpretada por Vera Holtz, que também lida com o alcoolismo.

“É uma personagem bem diferente da Roitman. Ela já tem um papel, uma profissão estabelecida, uma família estruturada. Ela passa por uma desestruturação e depois por uma reestruturação, já é bem diferente da Helena, que era uma pessoa não realizada, frustrada.”

Mesmo que a mudança nas representações no cinema não seja linear, Esther Hamburger acredita que um movimento que contribuiu para a dissolução de estereótipos é a oposição entre os gêneros deixar de ser tão polarizada.

Uma das produções atuais que exemplificam essa mudança é a série “O Gambito da Rainha”, que tem como personagem principal uma viciada em calmantes que também bebe com frequência.

“A série trabalha muito nesse nível porque o próprio xadrez, embora não seja exclusivamente masculino, é considerado mais masculino”, diz. Segundo ela, a construção da personagem Beth Harmon, interpretada por Anya Taylor-Joy, foge justamente aos estereótipos do feminino.

Nessa mesma produção, que se passa nos anos 1960, a mãe de Harmon bebe em casa e também é retratada como alcoólatra. Confinada num ambiente doméstico e lidando com a ausência cada vez mais aguda de seu marido, as latas de cerveja parecerem acompanhar a personagem em sua solidão.

Aqui, é a estrutura social que confinou a mulher ao ambiente doméstico que impulsiona o consumo do álcool, um registro mais próximo da antiga polarização entre gêneros. Mais um sinal de que as mudanças na vida e nas telas são constantes, mas não lineares.

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