LUCAS BRÊDA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No começo do mês, o Spotify, mais popular serviço de streaming de áudio do mundo, informou que estava fechando escritórios na Rússia, em retaliação aos ataques comandados por Vladimir Putin à Ucrânia. A decisão soou como uma provocação –uma lei assinada pelo presidente russo obriga empresas estrangeiras de mídia social com mais de 500 mil usuários a abrir escritórios no país, sujeitas ao risco de serem proibidas no território.
Mas, mais importante, o Spotify mexeu em seu conteúdo para se adequar à guerra. A plataforma divulgou que revisou milhares de obras sobre o conflito na Ucrânia e acabou removendo toda a produção das mídias estatais russas RT e Sputnik na União Europeia, nos Estados Unidos e em outros mercados do mundo.
Dias antes, o trecho de uma entrevista em nada relacionada à guerra também rodou a internet. “Não é um [papo de] botequim, porque tem uma multidão vendo lá fora. Isso aqui, querendo ou não, você sendo formado ou não, é um programa jornalístico, porra”, disse o músico Rogério Skylab em entrevista ao podcast “Flow”, um dos mais populares do Brasil. Monark, ex-apresentador do programa, então na bancada, rebateu. “Precisa ser? A gente não pode ser só dois moleques idiotas?”
O diálogo voltou a circular logo depois que Monark foi demitido e deixou de ser sócio da empresa que o produz, a Flow Produções. A saída dele veio na esteira da pressão contra o youtuber, que defendeu a existência de um partido nazista no Brasil, em diálogo com os deputados Kim Kataguiri e Tabata Amaral.
A moderação do conteúdo russo, assim como o debate entre Skylab e Monark –sobre a responsabilidade do que é dito num podcast que entrevista figurões para um público de milhões– evidencia dois fenômenos. O primeiro é o crescimento avassalador dos podcasts, que são mais atrativos para a publicidade do que a música e durante a pandemia se tornaram a galinha dos ovos de ouro das plataformas de áudio. O segundo é a consequência do primeiro –a necessidade de moderação desse tipo de conteúdo nunca foi tão debatida.
O termo podcast é usado desde o começo dos anos 2000, mas o formato como hoje é conhecido, com programas de áudio gravados e distribuídos online, foi se estabelecendo em paralelo ao aumento do acesso à internet ao redor do mundo. Mas eles só viraram febre quando passaram a ser incorporados pelos serviços de streaming de áudio, que ao longo da última década reinventaram a indústria fonográfica, então baseada na venda de produtos físicos.
Uma pesquisa realizada pelo IAB Brasil, o Interactive Advertising Bureau, associação que representa empresas de publicidade digital, revelou que, de 2019 para cá, o número de pessoas que ouviram pelo menos um podcast foi de 40% para 74% dos entrevistados. “Vários fatores contribuíram”, diz Rodrigo Tigre, autor do livro “Podcast S/A” e presidente do comitê de áudio da entidade.
“O primeiro é a facilidade de escutar, já que há três ou quatro anos empresas como Spotify e Deezer abriram suas plataformas para eles. Houve também o movimento da Globo, maior grupo de mídia do país, abraçando e divulgando o formato, e iniciativas de outros grupos, como o jornal Folha de S.Paulo fez com o Café da Manhã.”
Se antes da pandemia os podcasts já eram uma realidade, depois dela ganharam mais relevância. “Os encontros passaram a ser através de telas, e isso gerou uma fadiga delas. O podcast entra aí. Estou aprendendo, me entretendo, me aprofundando sobre um assunto enquanto estou na academia, no transporte e nesses descansos de tela”, diz Tigre.
Segundo o estudo “State of the Podcast Universe”, da empresa de tecnologia em áudio Voxnest, o Brasil teve um crescimento de 103% no número de novos podcasts em 2020. Em relação ao consumo, um estudo da Globo em parceria com o Ibope, 57% dos entrevistados começaram a ouvir podcasts durante a pandemia.
Segundo Christian Perrone, diretor de direito e tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade, o ITS Rio, a pandemia potencializou uma expansão dos sentidos, com os podcasts fazendo parte da vida das pessoas como um plano de fundo.
“Você quer ter uma experiência imersiva, entrar no metaverso, fazer parte da internet cada vez mais. É estar mais próximo dessa experiência concreta do espaço físico no espaço digital –uma sobreposição.”
Essa tendência, ele diz, se encontra com outra, esta já mais estabelecida, que é a da “participação social de cada indivíduo fazendo coisas que originalmente seriam de profissionais ou de especialistas específicos”. “Vimos isso no início dos anos 2000, com a explosão dos blogs. Veio a discussão sobre se o blogueiro tem que ser jornalista ou não, e o quanto isso se enquadra nas categorias protegidas pela liberdade de expressão.”
No Brasil, o “Flow” é o ápice desses processos. O programa estourou na pandemia, adicionando novos elementos, como a transmissão ao vivo, em vídeo, da gravação dos programas. É a incorporação da linguagem dos youtubers como uma nova camada da produção de podcasts.
“Podcast é um programa de áudio distribuído pela internet que se pode assinar. Esse é o conceito de origem”, diz Andreh Jonathas, presidente da Associação Brasileira de Podcasters, a ABPod. “Mas tem outras maneiras de incrementar. ‘Ah, mas não é podcast porque tem vídeo.’ Acho que é preciso superar esse debate. É uma mídia digital, que sofre transformações.”
A adição do vídeo também acaba sendo mais um chamariz para a publicidade. “Os anúncios em podcasts eram muito testemunhais, gravados na voz do apresentador. Aquilo vira parte integrante do episódio e tem uma perenidade. Mas está restrito àquele episódio”, diz Rodrigo Tigre.
“Hoje, temos tecnologia que possibilita ter anúncios que entram e saem dos programas, e que não necessariamente fazem parte dos episódios. Você consegue monetizar e entregar aquilo em todos os programas.”
A divisão dos programas em bloco também é uma ruptura com o modelo do YouTube, em que anúncios interrompem um vídeo. “Como o anúncio está inserido no intervalo, sem interromper a escuta, é possível usar formatos maiores do que os seis segundos do YouTube. Dados do IAB mostram que esses são os formatos que dão mais resultado.”
Segundo Andreh Jonathas, “a grande força do podcast é a atenção e a retenção”. “Quem escuta ouve o programa inteiro. Eu assinei aquele conteúdo, eu ouço o que eu quero, é uma característica da mídia. E é um custo muito menor que investir numa TV, já que a operação, mesmo muito profissionalizada, é ‘peso leve’.”
Tudo isso faz dos podcasts uma seara potencialmente mais lucrativa para as plataformas do que as músicas, que são mais difíceis de monetizar. Não é à toa que o boicote de Neil Young, que retirou seu catálogo do Spotify acusando a plataforma de disseminar fake news e desinformação a respeito da Covid-19 no podcast de Joe Rogan fez muito mais barulho do que a reclamação constante dos músicos em relação ao que recebem por suas músicas.
Hoje com 406 milhões de usuários mensais únicos –20% deles na América Latina–, o Spotify divulgou que a participação dos podcasts no total de horas de consumo na plataforma atingiu um recorde histórico, sem revelar os números. Por ano, o aumento no consumo dos programas por usuário é de 20%.
A participação da publicidade na receita da plataforma no quarto trimestre de 2021 também atingiu um recorde, com 15% do total. Não é à toa que o acordo de exclusividade entre Spotify e Joe Rogan é estimado em mais de US$ 100 milhões.
Neste cenário, a moderação de conteúdo é hoje o grande desafio. De certa forma, plataformas como o Spotify se tornaram redes sociais, em que pessoas não especializadas produzem conteúdo e podem alcançar públicos mais numerosos do que um canal de TV, por exemplo.
“Isso coloca a indústria numa situação diferente”, diz Christian Perrone. “Esses sistemas de streaming eram pensados como ‘estou repassando algo que já passou pelas estruturas sociais’. Por exemplo, um filme já passou pela classificação indicativa. Mas, nesse processo de quase virar rede social, uma coisa é a Netflix. Outra coisa é uma Netflix misturada com YouTube.”
No caso brasileiro, “dois moleques idiotas”, como se definem Monark e seu ex-parceiro, Igor “3K” Coelho, conseguiram entrevistas de grande repercussão com figuras como os presidenciáveis Sergio Moro e Ciro Gomes e o deputado federal Eduardo Bolsonaro. Isso sem contar a audiência da participação do ex-presidente Lula no programa “Podpah”, que surgiu no mesmo estúdio do “Flow”, mas seguiu caminho próprio, apesar do formato praticamente idêntico.
Esses podcasts se tornaram ferramentas potentes de comunicação com uma juventude que está longe da TV e do rádio. Além disso, podem durar quatro ou cinco horas, com um formato menos engessado que telejornais –com tempo de fala restrito, discursos genéricos e forjados por equipes de media training.
Ao mesmo tempo, são terrenos férteis para que políticos e cientistas possam disseminar informações falsas sem que sejam questionados. Afinal, ao se classificarem como “dois idiotas”, os apresentadores acabam se esquivando da responsabilidade de reunir informações para rebater um convidado ou apontar uma mentira.
“Quando a gente pensa na arte, na propriedade intelectual no geral, a gente tinha uma cultura mais voltada para ouvir os especialistas –uma cultura de leitor”, diz Perrone. “Hoje, há uma cultura de leitor e escritor, porque as pessoas fazem parte do processo cultural. Você tem os blogs, que são o primeiro passo nesse processo, depois os youtubers e agora os podcasts, tiktokers e outros.”
“Antes, existia uma linha, que agora se torna um espaço cinza entre o que efetivamente é o espaço privado, em que se tem o grau de liberdade de falar, e um espaço público, em que a minha liberdade tem que ser modulada pelo fato de que outras pessoas estão escutando”, completa.
Segundo ele, já existe legislação que poderia dar conta da moderação. “Não é um problema de leis, mas de como essa nova circunstância se encaixa nas leis que nós já temos.”
Mas como fazer para moderar tantas horas de conteúdo, em diversas línguas e fazendo uso de recursos como a ironia? “Esse talvez seja o maior desafio para as plataformas”, diz Pedro Kurtz, chefe de conteúdo da Deezer Brasil, que em 2021 duplicou o seu investimento em podcasts. “Temos um comitê de ética interno, com representantes dos países em que estamos inseridos, mas queremos trazer os usuários para o processo.”
Na prática, diz, a moderação do conteúdo que viole as regras da plataforma –como violência, discriminação e discurso de ódio contra indivíduos ou grupos– vem após as denúncias de usuários, mas não houve até hoje um caso em que a própria Deezer excluiu um episódio de podcast por descumprir suas normas.
“É responsabilidade da plataforma também, mas é algo que a gente pretende criar com a comunidade”, diz Kurtz, sobre a moderação. “É uma construção coletiva, do que a gente entende como sociedade.”
No meio disso, é possível que a publicidade seja uma entidade moderadora, ameaçando a retirada dos patrocínios dos programas considerados danosos –como no “Flow”. Monark, aliás, pode até produzir, mas não lucrar com anúncios em vídeos publicados por ele em qualquer canal que venha a criar no Youtube.
De toda forma, os podcasts são só a nova fronteira da discussão sobre o impacto da internet. “Há uma série de tecnologias que vão aparecer e vão tornar ainda mais complexa a nossa relação com essas plataformas”, diz Perrone. “É só pensar em metaversos. Como se modera uma camiseta q
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