SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O ano começou com destruição na cultura. Em 8 de janeiro, seguidores do ex-presidente Bolsonaro invadiram o Congresso Nacional e depredaram obras de artistas como Brecheret, Athos Bulcão, Di Cavalcanti e Frans Krajcberg. Os vândalos até mesmo urinaram sobre uma tapeçaria de Burle Marx.
Ao todo, 78 obras foram danificadas, sendo 14 no Senado e 64 na Câmara dos Deputados, provocando um prejuízo de mais de R$ 2 milhões.
Esse cenário de certa forma é uma metáfora para a principal tarefa de Margareth Menezes à frente do Ministério da Cultura – reconstruir um órgão que, a exemplo da escultura “Bailarina”, de Brecheret, foi atacado e quase destruído sob o governo Bolsonaro.
A nova gestão termina o ano com a necessidade de promover ajustes na Lei Rouanet e sancionar a cota de tela, projeto que se arrastava há anos no Congresso e que só foi aprovado no Senado este mês.
A medida protege o cinema nacional ao tornar obrigatória a exibição de obras brasileiras nas salas por um número de dias fixos. No entanto, a cota venceu em 5 de setembro de 2021 e nada a substituiu.
Como resultado, praticamente todos os filmes nacionais ficam relegados a sessões anteriores às quatro da tarde, horário em que os cinemas ficam mais vazios.
O audiovisual também está atento aos debates em torno da regulação do streaming. A medida prevê cobrança de impostos a plataformas como Netflix e a criação de uma cota para obras nacionais nesses serviços. Em novembro, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou a proposta, que foi encaminhada para a Câmara.
Além dessas discussões, o ano foi marcado pela reestruturação da Lei Rouanet, o mais importante mecanismo de fomento cultural do Brasil.
Em janeiro, a pasta anunciou a liberação de quase R$ 1 bilhão em recursos da medida que haviam sido bloqueados na gestão anterior. Durante seu mandato, Bolsonaro promoveu uma série de mudanças que enfraqueceram o instrumento de incentivo.
Ele reduziu o cachê de artistas para R$ 3.000 -uma diminuição de mais de 93% no valor que era permitido até então, de R$ 45 mil – e paralisou a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a Cnic.
Considerado essencial para o funcionamento da Rouanet, o colegiado é formado por 21 membros da sociedade civil e tem como objetivo garantir transparência na aprovação dos projetos.
Em março, o presidente Lula assinou um decreto desfazendo essas mudanças. Devolveu protagonismo à Cnic, aumentou o cachê dos artistas para R$ 25 mil e criou mecanismos para combater a centralização de recursos no Sul e no Sudeste.
Embora o decreto tenha sido bem recebido no setor, especialistas consideram importante promover ajustes.
“Um dos pontos é a dificuldade dos proponentes em relação aos valores dos cachês”, diz Aline Akemi Freitas, advogada especialista na Lei Rouanet. “Alguns desses valores não retomaram ao patamar anterior ao governo Bolsonaro. Considerando a inflação desse período, a queda fica mais expressiva.”
Akemi afirma também que falta regulamentar a prescrição das prestações de contas não analisadas. De acordo com ela, esse tema é importante porque o Estado cobra documentos de projetos concluídos há mais de 15 anos em razão da morosidade nas análises.
Como poucos agentes culturais guardam papeladas tão antigas, é comum que a prestação de contas acabe reprovada. “Nesse caso, o não reconhecimento da prescrição torna infinito o prazo que o Estado tem para cobrar o proponente”, diz Akemi.
No começo deste ano, por exemplo, a Ancine anistiou a prestação de contas de cerca de 4.000 filmes e séries com base em uma resolução do TCU, o Tribunal de Contas da União. Em 2022, o órgão publicou uma norma estabelecendo em cinco anos o prazo para analisar prestações de contas. Depois desse período, a entidade não pode mais fazer cobranças, uma vez que o processo prescreveu.
A centralização de recursos no Sul e no Sudeste é outro gargalo da Lei Rouanet que persiste a despeito das promessas da ministra Margareth de acabar com o problema. Para tentar resolver a questão, o MinC incluiu no decreto de março a possibilidade de repassar os recursos da Rouanet por meio de editais públicos.
Dessa forma, a pasta conseguiria atuar junto aos patrocinadores, estabelecendo diretrizes e critérios que terão de ser respeitados nos editais. No entanto, a medida ainda não surtiu efeito.
Dados do Ministério da Cultura mostram que 69% do R$ 1,2 bilhão que foi captado de janeiro ao dia 18 de dezembro estão no Sudeste e 16% no Sul. A região Nordeste vem logo depois (8%), seguida pelo Norte (3%) e Centro-Oeste (2%).
Para Danilo César, historiador e produtor cultural, o Estado poderia diminuir a concentração patrocinando projetos por meio de suas estatais e autarquias. “Acho que teve um começo importante esse ano, com a ‘Rouanet nas Favelas’ e a ‘Rouanet Norte'”, diz ele, referindo-se a iniciativas que o MinC criou para democratizar recursos. “Mas pode e deve melhorar a partir do ano que vem e dos demais.”
Ele diz também ser importante que o MinC aprimore mecanismos de participação social na gestão pública e fortaleça instrumentos de controle sobre a execução de políticas culturais. “Tem uma grande quantidade de recursos que não necessariamente está sendo bem executada pelos estados e municípios, algo que precisa ser aprimorado.”
Agentes culturais dizem que é isso que está acontecendo com a implementação da Lei Paulo Gustavo em São Paulo.
O estado é a região do país que recebeu mais recursos da medida, criada para ajudar o setor cultural a se recuperar dos prejuízos causados pela pandemia. Foram aportados por volta de R$ 356 milhões para o estado e R$ 372,4 milhões para as suas 645 cidades, totalizando R$ 728,7 milhões.
Ocorre que a Secretaria da Cultura de São Paulo publicou editais que desagradaram parte do setor cultural paulista. Profissionais consideram que os documentos estimulam a centralização de recursos e negligenciam o interior paulista. Por esse motivo, a Defensoria Pública da União (DPU) entrou com uma ação para suspendê-los.
O pedido foi acatado judicialmente em 25 de outubro, mas o governo de São Paulo recorreu e a decisão foi revogada.
“A secretária da Cultura criou uma série de impedimentos que deixaram uma grande parte do setor de fora”, afirmou Caio Martinez, articulador do FLIGSP, o Fórum de Artes do Litoral, Interior e Grande São Paulo.
De acordo com ele, um dos impedimentos é a exigência de no mínimo cinco anos de existência para que empresas possam pleitear os recursos. Agentes culturais dizem que essa exigência é problemática por excluir empresas mais novas e ignorar que muitas delas faliram durante a pandemia.
Outro ponto que é alvo de crítica é a falta de cotas para produtores de fora da capital em segmentos como filmes e séries.
“A interiorização dos recursos e o reconhecimento do interior era uma das bandeiras do governador Tarcísio”, diz Martinez. “Mas a gente não viu nenhuma vez isso acontecer. Muito pelo contrário.”
Produtores culturais paulistas também dizem que a falta de atenção às suas demandas foi um problema recorrente ao longo deste ano.
“Até teve diálogo com a secretaria, mas não teve escuta”, diz Kalyell Ventura, presidente da Icine, o Fórum de Cinema do Interior Paulista. “Não posso dizer que não teve espaço de interlocução, mas eu não acredito na efetividade deles, dado o perfil de como esses diálogos acontecem.” Procurada pela Folha, a pasta não quis comentar as críticas.
O destino do Museu da Casa Brasileira foi outro motivo de crise na política cultural paulista. Em abril, a instituição perdeu sua sede, o solar Crespi Prado, na avenida Faria Lima, que pertence à Fundação Padre Anchieta (FPA).
A Secretaria da Cultura, à qual o museu pertence, e a FPA, dona do casarão e gestora da instituição desde janeiro do ano passado, encerraram o convênio de administração. Por isso, a pasta decidiu transferir a instituição para a Casa Modernista, na Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo.
No entanto, a Justiça suspendeu a desocupação do solar Crespi Prado pela instituição, única do país dedicada à arquitetura e ao design. A secretaria diz que o museu continua funcionando em sua antiga sede e que parte do acervo está em uma reserva técnica.
“A manutenção do espaço é feita regularmente sob a supervisão de um museólogo responsável que zela pelas rotinas de conservação e salvaguarda de todo o acervo”, diz a pasta.