Ao longo da história, os quintais foram vistos apenas como uma extensão da casa, um lugar de descanso e reunião entre amigos e familiares. Mas, nas áreas rurais do Brasil, uma silenciosa revolução vem acontecendo. É de suas hortas e pomares que mulheres têm tirado o sustento da família, encontrado um enorme potencial econômico e resgatado sua autonomia.
Por trás dessa transformação está a agrônoma Elisabeth Cardoso, que há quase vinte anos trabalha com projetos voltados à agroecologia e movimentos feministas. “No início, quando eu perguntava a qualquer mulher quanto de dinheiro ela imaginava tirar do seu quintal, elas me diziam que, em média, R$ 300 por ano, não muito mais que isso.”
Então, em 2009, durante um curso de formação em agroecologia para mulheres, em Minas Gerais, Elisabeth criou uma espécie de caderneta e propôs que elas passassem a tomar nota de tudo que retiravam de suas terras, do punhado de acerolas para o suco do almoço à galinha doada para a festa da igreja. O importante era anotar tudo, sem deixar nada de fora. “A ideia era tornar visível tudo aquilo que elas produziam, mas não percebiam.”
Um enorme valor, ali no quintal
As chamadas Cadernetas Agroecológicas são compostas de uma tabela com quatro colunas que identificam as principais relações econômicas que acontecem nos quintais: consumo familiar, venda, trocas ou doações. Tudo isso impresso em papel grosso e resistente, para que as mulheres possam fazer suas anotações no calor do dia a dia, com a mão molhada ou suja de terra. Ao lado do que foi consumido, elas também escrevem o custo estimado de cada um desses itens, com base no preço das feiras ou dos mercados locais.
Quando os itens são colocados na ponta do lápis, os resultados se mostram reveladores. “Os R$ 300 que elas imaginavam retirar por ano são, na verdade, R$ 300 semanais. Algumas concluíram que conseguiam quase R$ 1.000 mensais em produtos de origem vegetal ou animal”, conta a idealizadora do projeto, que já chegou a cerca de 10.300 mulheres em todo o país e que integra as atividades do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, em Viçosa (MG).
As contas surpreenderam também a agricultora Solange Borges, de Espera Feliz (MG). “Como vivíamos do cultivo do café, sabíamos o seu valor, porque era um produto comercializado. Mas eu nunca tinha parado para analisar que os quintais dos quais tirávamos o alimento do dia a dia da nossa família tinham também um enorme valor econômico.”
Mais ricos do que imaginavam
Solange conta que, com as anotações, passou a prestar mais atenção às plantas ao seu redor, descobrindo, inclusive, novas espécies comestíveis. Mas sua maior emoção foi notar que, em alguns meses, a soma dos valores dos alimentos doados a vizinhos e familiares chegava a quase R$ 500. “Com a caderneta, descobri que somos mais ricos do que imaginávamos, tanto em recursos quanto na diversidade de alimentos que temos ao nosso redor. Sou muito grata por poder compartilhar com outras pessoas o que a terra nos dá com tanta generosidade.”
Tão importante quanto coletar as informações por meio das cadernetas, é discutir coletivamente os resultados anotados. Por isso, a cada três meses, as agricultoras participam de rodas de conversa para compartilhar somas e conclusões. Elisabeth conta que, em uma dessas conversas, uma das agricultoras relatou sempre se sentir cansada no fim do dia sem entender a razão. Mas, depois de começar a usar a caderneta, passou a se dar conta de que a causa da sua exaustão estava na quantidade de coisas que produzia.
“Apesar de estarem no centro da dinâmica doméstica, muitas mulheres na área rural ainda têm essa visão de que o homem é o provedor e de que elas são apenas ajudantes. As cadernetas mostram que o que é considerado ‘ajuda’ chega, inúmeras vezes, a constituir 50% da renda daquela família”, diz Elisabeth, que está escrevendo sua tese de doutorado a partir do trabalho com as agricultoras.
Uma nova consciência
Para ela, um dos destaques da metodologia é o resgate da autoestima das mulheres, que passam a enxergar a importância da sua atividade na renda familiar. “Infelizmente, nossa sociedade ainda mede o valor das coisas pelo dinheiro que aquilo movimenta. Mas como é possível mensurar o trabalho que essas mulheres fazem? A caderneta consegue quantificar o que é produzido por elas.” Os registros servem também como base para que elas possam negociar políticas públicas, acessar programas de crédito e até provar a atividade como agricultoras para ter acesso a uma aposentadoria adequada. “Quando elas começam a ver os resultados desse gesto tão simples de registrar suas atividades cotidianas, ficam apaixonadas. Não pela caderneta em si, mas pela caderneta como símbolo de uma nova consciência que emergiu.”
Solange afirma que, com a alta dos preços nos supermercados, a produção de alimentos para consumo próprio tem sido fundamental para que as famílias atravessem a crise com resiliência e autonomia nas áreas rurais. “Tudo o que consumimos sai do nosso quintal ou daquilo que compramos ou trocamos com nossos vizinhos. Se dependêssemos dos mercados, a situação seria muito pior.”
Como coordenadora do grupo de trabalho de mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia, Elisabeth implementou a caderneta em dezenove estados. Agora, quer espalhar o material pela América Latina, tendo em vista a forte ênfase na agricultura familiar nesses países, que têm na sua população rural de mulheres uma das parcelas mais pobres da população global. “A gente precisa arrumar o mundo”, diz a agrônoma. “Eu queria que todas as mulheres, especialmente as rurais, pudessem se libertar dessa condição desigual, tornar visível o seu trabalho e resgatar o seu valor.”
Texto: Gabriela Portilho
Foto: Brenda Luisa
Conteúdo publicado originalmente na TODOS #45, em setembro de 2022.
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