SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Christopher Reeve, o mais icônico intérprete do Super-Homem, morreu há quase duas décadas, mas sua última aparição nos cinemas foi em junho. Não com materiais de arquivo em algum documentário ou com imagens reaproveitadas de filmes antigos, mas em cenas inéditas, recém-gravadas.
Mas como o americano pode estar no elenco do novíssimo “The Flash”, sobre seu camarada da DC Comics? A solução foi usar computação gráfica, recriando o ator digitalmente. A estratégia, porém, além de cara e onerosa, não é perfeita. A participação do clone no filme durou poucos segundos, e foi inexpressiva e notavelmente falsa.
Isso, no entanto, deve mudar em breve. A promessa é que o uso de inteligência artificial barateie, otimize e amplie a recriação de atores, mortos ou não, nas telas, gerando performances que nunca aconteceram de verdade.
James Dean, que morreu há 68 anos, por exemplo, está na fila para estrelar o filme “Back to Eden”, algo que será viabilizado pela nova tecnologia depois de uma tentativa em computação gráfica falha há quatro anos. Esta última, aliás, já ressuscitou Peter Cushing e trouxe uma jovem Carrie Fisher para “Rogue One: Uma História Star Wars”, com resultados que alimentaram piadas nas redes sociais.
É um admirável mundo novo, mas que traz consigo questões éticas e legais tão intrincadas que foram capazes adiar a cerimônia do Emmy e de congelar a produção de filmes e séries em Hollywood desde o dia 13 de julho, quando o SAG-Aftra, sindicato de atores dos Estados Unidos, entrou em sua primeira greve desde 1980.
Como uma kriptonita para os grandes estúdios, a paralisação escancarou relações de trabalho precárias e, mais importante, se adiantou em relação a um golpe ainda mais violento que pode vir agora que a inteligência artificial começa a ser adotada em larga escala.
Enquanto os atores param, Disney, Netflix e outros estúdios americanos vêm divulgando vagas de emprego para especialistas no assunto, voltadas às mais diversas áreas de seus negócios, de parques temáticos à produção audiovisual.
Na guerra de versões que se armou, os atores e seu sindicato alegam que, além de possibilitar a exploração da imagem de mortos, os estúdios estudam maneiras de escanear uma única performance, pagar por ela e usar os registros para criar digitalmente novas atuações, que seriam usadas em vários outros filmes, sem novas contratações.
“Nos disseram que se não entrássemos em uma veículo para fazer um escaneamento 3D, nós seríamos mandados para casa sem pagamento”, disse Prince Royal, um figurante de “The Flash”, à revista Variety. A produção do filme alegou que as imagens seriam usadas em cenas de efeitos especiais, mas a classe se sente insegura quanto ao propósito real desses escaneamentos, já que os contratos não esclarecem quando e como eles serão usados.
“Todos esses dados são coletados e dão aos estúdios a habilidade de reutilizar a aparência e voz de um ator para sempre, da forma que quiserem, sem que o ator veja um centavo além do que foi pago por aquela captura original”, diz Bill Lyon, que trabalhou como figurante em “Mindhunter” e “As Vantagens de Ser Invisível”.
“Sem a possibilidade de barganhar por uma compensação pelo uso de sua aparência, a inteligência artificial se tornou uma ameaça para os atores. Eu jamais assinaria um contrato com uma cláusula dessas, é algo que me impediria de continuar trabalhando como figurante.”
O protesto, agora, não é para banir totalmente a inteligência artificial em Hollywood, mas para que atores tenham a possibilidade de opinar na forma como a tecnologia vai ser usada e não sejam pressionados a ceder aos estúdios sob a ameaça de não arranjar mais emprego. É um agravante de uma relação já fragilizada.
Estúdios, por outro lado, confirmam que uma proposta sobre o uso da tecnologia nos sets de fato foi feita ao sindicato, mas que ela não foi apocalíptica do jeito que a associação faz parecer. Eles se negam, porém, a dar uma outra versão para o que estava no acordo oferecido antes de as negociações desandarem.
Aqueles que defendem os figurões de Hollywood dão sustância ao embate ao afirmar que a ampliação do uso da inteligência artificial é inevitável, e que, como em toda revolução tecnológica, ela pode até fechar postos de trabalho, mas vai abrir vários outros, já que será preciso ter especialistas garantindo sua implementação e funcionamento.
Alegam ainda que estrelas como Nicole Kidman, garota-propaganda da rede de cinemas AMC, poderia lucrar com anúncios publicitários sem precisar sair de casa ou achar espaço na rotina de gravações de seus filmes e séries -bastaria disponibilizar sua aparência para que máquinas a pusessem em comerciais.
A inteligência artificial, afinal, não é de todo ruim. Ela foi usada recentemente para rejuvenescer Harrison Ford em “Indiana Jones e a Relíquia do Destino”. Aos 81 anos, o ator apareceu em cena como se estivesse na casa dos 30, num flashback que só foi possível graças ao machine learning, ferramenta do universo da inteligência artificial que analisa milhares de imagens antigas do ator e aprende a recriar sua aparência.
É uma técnica semelhante à utilizada para rejuvenescer Robert De Niro em “O Irlandês”, de Martin Scorsese. Os dois filmes tiveram o envolvimento da Industrial Light and Magic, referência em efeitos especiais em Hollywood.
Documentários em que a identidade de alguém precisa ser protegida, também, podem se beneficiar do chamado deepfake, que sobrepõe um rosto a outro a fim de mascarar o original. “Bem-Vindo à Chechênia” fez isso há três anos para esconder os membros de uma rede de apoio à população LGBTQIA+ que atuam na região russa.
Gente do calibre de Kidman, Ford e De Niro, no entanto, não são o real motivo para a greve. Seus salários milionários não devem ser afetados pela paralisação, e eles têm poder de barganha suficiente para incluir em seus contratos cláusulas que os protegem do uso indiscriminado de sua imagem.
Robin Williams, morto há nove anos, parece ter previsto que este dia chegaria e incluiu em seu testamento uma proibição no uso de sua imagem nas telas por 25 anos a partir da data de sua morte. O espólio de medalhões como Marilyn Monroe, também, pode com facilidade alegar quebra sobre os direitos de imagem da atriz e acionar a Justiça caso a recriem de forma póstuma.
Assim, o debate para quem já está morto se torna muito mais ético do que legal. No caso de Christopher Reeve, muitos fãs recuperaram uma entrevista dos anos 1980 em que o intérprete do Super-Homem critica o que chama de “sequelite”, uma tendência de Hollywood em criar sequências sem que elas sejam de fato necessárias, buscando lucro. Soa familiar?
No Brasil, uma discussão semelhante aconteceu no mês passado, quando Elis Regina foi recriada digitalmente para um comercial da Volkswagen. Maria Rita, sua filha, autorizou e participou da ação publicitária -mas é impossível saber se a voz de “Como Nossos Pais” diria mesmo sim ao trabalho, caso estivesse aqui.
Essa, no entanto, é uma discussão complementar à greve dos atores. Nela, quem realmente está exposto, formando a mais significativa massa dos 150 mil filiados ao SAG-Aftra, são atores relativamente desconhecidos e figurantes. A eles se juntam dublês e dubladores, pouco protegidos pelas relações de trabalho em vigor.
“A gente tem que usar essas tecnologias não só em benefício individual, mas coletivo, para a evolução da indústria como um todo. Até porque pagar uma diária para um figurante não vai quebrar a Netflix”, diz Victor Drummond, diretor da Interartis, associação brasileira que reúne cerca de 3.000 artistas do audiovisual.
Ele explica que a discussão já chegou ao país, por meio das plataformas de streaming, que costumam ter contratos de trabalho no Brasil baseados naqueles oferecidos pela matriz. Ou seja, muitas das cláusulas assinadas pelo dublador de uma animação por aqui são iguais àquelas assinadas nos Estados Unidos.
Associados da Interartis já o procuraram para falar de termos que dão cessão total sobre direitos de imagem e voz, sem especificar seu uso. Ainda assim, uma greve no Brasil é uma ideia extremamente remota, e um projeto de lei, a PL 2.370/2019, que regulamenta direitos autorais no ambiente digital e deve ser votada em breve, ajudará a acalmar os ânimos no setor, atenuando a vulnerabilidade de parte da classe artística.
“A Interartis Brasil recomenda que não sejam aceitas, em negociações e contratos, cláusulas que permitam a cessão da voz, imagem ou qualquer outra forma de expressão para registro e posterior uso, reformulação ou adequação por meio de ferramentas de inteligência artificial. Entendemos que a sua inclusão é inadequada e desequilibrada”, diz um alerta no site da associação.
O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões do Estado do Rio de Janeiro, o Sated, confirma que contratos que preveem o uso posterior e digital do trabalho de atores, em especial dubladores, já estão sendo assinados no país. Uma reunião para discutir o assunto deve ser convocada em breve, afirma o presidente Hugo Gross.
“Não podemos ser ingênuos, essa é uma discussão ética antes de qualquer coisa. Nós vamos nos programar para matar empregos? Falamos de uma preocupação social, não de mero corporativismo. A tecnologia cria novos empregos, mas a sociedade tem que pensar no espaço que ela vai ocupar, até onde vai entrar no processo criativo”, afirma ainda Drummond, da Interartis.
Algumas das maiores produtoras especializadas em efeitos especiais defendem, justamente, que a inteligência artificial não pretende cortar a parte mais artesanal do negócio. No caso do último “Indiana Jones”, por exemplo, cerca de cem especialistas em efeitos precisaram esculpir digitalmente o rosto mais jovem de Harrison Ford, a partir das informações coletadas por ferramentas de machine learning.
Em teoria, a tecnologia não atropela o processo, apesar de o tornar mais fácil e ágil. Procurada pela reportagem, no entanto, a Industrial Light and Magic diz que a inteligência artificial é uma parte tão pequena do trabalho que não se sente apta para falar sobre o assunto, escancarando um mal-estar para discutir o tema em meio à paralisação.
Outras duas casas de efeitos especiais pioneiras no uso de inteligência artificial em Hollywood não responderam aos pedidos de entrevista. No Brasil, a Boiler Filmes, que está por trás do comercial com Elis Regina, diz que contratos de sigilo com seus clientes a impedem de falar sobre o assunto, apesar de a reportagem reiterar que as perguntas seriam sobre a tecnologia, não sobre a produção da peça publicitária.
E com a crescente demanda por uso de efeitos especiais em filmes e séries, as equipes desses departamentos na Marvel Studios -que usou inteligência artificial na série “Invasão Secreta”- decidiram, na semana passada, se sindicalizar, mostrando que de nada adianta apenas criar novos empregos. Ameaças de greve continuarão pairando sobre a indústria, que acumula reclamações de longas jornadas de trabalho e horas extras não remuneradas, se as relações de trabalho não forem reestruturadas.
Complicando ainda mais a equação, o WGA, sindicato de roteiristas de Hollywood, também está em greve desde maio, em parte porque teme que a inteligência artificial possa promover um massacre nas salas de roteiro. É a primeira vez que eles e os atores param ao mesmo tempo em 63 anos.
Se as classes saírem vitoriosas, como indica a recente retomada das negociações com os roteiristas, mudanças profundas na máquina de produção que é Hollywood devem acontecer, ameaçando até mesmo os salários milionários que CEOs de empresas como Disney e Warner Bros. Discovery recebem.
A adoção de ferramentas e processos de forma súbita e pouco planejada faz qualquer cinéfilo lembrar de Ian Malcolm, personagem de Jeff Goldblum em “Jurassic Park”, filme que tem o dedo da Industrial Light and Magic e revolucionou o uso de efeitos especiais em Hollywood.
“Os seus cientistas estavam tão preocupados se poderiam ou não, que não pararam para pensar se deveriam.”