Em 2006, enquanto fazia um trabalho da faculdade de relações internacionais, o sociólogo Marcelo Haydu, 44 anos, de São Paulo, conheceu de perto a realidade dos refugiados no Brasil. “Eu fiz contato com um grupo de congoleses e pude ver quanto é difícil recomeçar a vida praticamente do zero nessa condição. Foi algo que mexeu muito comigo porque sou descendente de um refugiado”, conta.
“Cresci ouvindo meu pai contar histórias sobre meu avô, um sérvio que veio escondido no porão de um navio, fugindo dos conflitos da ex-Iugoslávia na década de 40. Então, me dispus a ajudar esse grupo no que fosse preciso”, diz, ao explicar o que deu origem ao seu envolvimento com a causa e levou à fundação do Adus – Instituto de Reintegração do Refugiado.
O grupo, Marcelo logo constatou, precisava de muita coisa: de acompanhamento em consultas médicas, já que a maioria ali mal podia se comunicar com os especialistas, a auxílio para conseguir moradia, matricular os filhos na escola e arrumar emprego. Afinal, quem cruza fronteiras em busca de refúgio muitas vezes chega não só sem dominar o idioma, como também sem conhecer ninguém e sem ter ideia de como será recebido.
Portas abertas
E, segundo Marcelo, ao contrário do que se imagina, o povo brasileiro não costuma ser acolhedor com todo refugiado. Há preconceito de raça, religião e nacionalidade, além da desconfiança de que essas pessoas possam tirar postos de trabalho de quem é daqui ou, pior, de que poderiam ter saído do país de origem por ter feito algo errado. As dificuldades que enfrentam são imensas. Mesmo assim, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o total de deslocados pelo mundo ultrapassou os 82 milhões em 2021 e cresce ainda mais com a guerra na Ucrânia.
O fato é que, diante das demandas dos congoleses, Marcelo considerou que devia buscar o apoio de dois amigos simpatizantes da causa: o empresário Victor Mellão, que, na época, era seu colega de faculdade, e o arquiteto Andrea Piccini. Os três passaram a se envolver cada vez mais com a reintegração de refugiados até que, em 2010, decidiram oficializar a atividade, fundando o Adus. “O nome vem do latim e significa local de acesso, entrada, portas abertas, que é o que queríamos que o instituto representasse para essas pessoas”, diz.
“Nós íamos a albergues e organizações que acolhem refugiados explicar que nosso objetivo era fazer um cadastro para conhecer suas necessidades e ajudá-los. De encontro em encontro, o número de participantes foi crescendo”, conta Marcelo, destacando um caso que reforçou sua motivação. “Eu arrumei emprego em uma empresa de serviços de gesso para um rapaz chamado Kossi Aviagva, que deixou a Costa do Marfim em meio aos conflitos de 2011. Mas perdi o contato com ele. Um tempo depois, recebi uma ligação de Campinas. Era o Kossi me agradecendo porque a oportunidade o levou a abrir um negócio de instalação de paredes e placas de gesso.”
Em 2011, o Adus criou seu curso de formação de voluntários. E logo passou a promover passeios culturais com os refugiados para ambientá-los ao país. Em 2013, iniciou um programa de aulas de português e, em 2015, já certificado como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), conseguiu aprovação para ocupar parte de um prédio então abandonado no centro de São Paulo.
Um oásis
A conquista de uma sede, diz Marcelo, moldou a dinâmica do trabalho dali em diante. “Ampliamos os programas e começamos a realizar bazares e feiras étnicas para angariar doações e estruturar o espaço. Hoje, temos vinte contratados.” Uma das novidades dessa fase foi a criação do projeto Mentes Abertas, que capacita o refugiado para que atue como professor na escola de idiomas do instituto, a Nós, o Mundo. “A ideia é reunir o conhecimento linguístico e a bagagem cultural que a experiência de vida do refugiado pode proporcionar, gerando receita para ele e para os nossos projetos”, explica.
Atualmente, cinquenta professores de idiomas fazem parte do cadastro do instituto. Ao longo de doze anos, o Adus capacitou mais de 1.200 refugiados para processos seletivos, inseriu cerca de 800 no mercado de trabalho e ensinou português a mais de 4.000. O jornalista e diretor de teatro e TV venezuelano Raul Siccalona, refugiado político de 76 anos, é um dos alunos das classes de nosso idioma. “Vim para o Brasil há dois anos e meio e senti muita dificuldade para aprender a língua, ainda mais na minha idade. Por isso, encontrar o curso do Adus na internet, em plena pandemia, foi como achar um oásis porque me trouxe a oportunidade de melhorar no português e saber mais sobre a cultura do país”, afirma.
“O Brasil é vizinho da Venezuela e, mesmo assim, era uma nação desconhecida para mim. A imagem que eu tinha era muito ligada a futebol e Carnaval, então me surpreendi ao descobrir as diferenças regionais do país. Ainda caio no ‘portunhol’, mas a maneira como venho aprendendo o idioma no instituto me traz mais facilidade para fazer amigos e entrar em contato com profissionais da minha área de atuação.”
Marcelo Haydu, que hoje é diretor-presidente do Adus, se diz feliz por saber que a instituição tem impacto real na vida dos refugiados. Ao mesmo tempo, afirma que esse trabalho só é necessário por causa das situações-limite a que essas pessoas são submetidas em seu país de origem e que as obrigam a fugir.
E porque, embora mantenha uma política de portas abertas, o governo federal não atua para que elas consigam se inserir na sociedade e recomeçar a vida com dignidade por aqui. O resultado é que esse tipo de iniciativa fica a cargo de organizações como o Adus. “Tenho trabalhado para fortalecer ainda mais nossas ações porque sei quanto o nosso papel é importante para que os refugiados possam retomar suas vidas.”
Texto: Romy Aikawa
Foto: Marcus Steinmeyer
Conteúdo publicado originalmente na TODOS #44, em julho de 2022.
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