(FOLHAPRESS) – Maria Callas suplicava à deusa da lua para que derramasse paz sobre o caos do mundo, purificando corações ardentes no campo de batalha e iluminando, com sua luz, o que antes era obscuro. Mas não foi só o vocal inebriante da soprano que fez da sua interpretação referência para a ária “Casta Diva”, de Vincenzo Bellini. O semblante melancólico e a intensidade do canto faziam parecer que Callas implorava por si própria.

 

Não é à toa que “Casta Diva”, da ópera “Norma”, abre as cortinas do filme biográfico sobre Maria Callas, dirigido por Pablo Larraín. A melodia conduz Angelina Jolie, que dá vida à soprano, na cena em que apenas seu rosto é emoldurado pela tela, enquanto ela dubla majestosa o clamor italiano, com o olhar tão triste quanto o de sua dona original.

“Maria” é o último filme de Larraín da trilogia dedicada a desvendar mulheres que marcaram o século 20. Os antecessores foram “Jackie”, de 2016, que levou Natalie Portman a interpretar Jacqueline Kennedy, mulher do presidente americano assassinado em 1963, e “Spencer”, de 2021, que se debruça sobre a princesa Diana, vivida por Kristen Stewart, elogiadíssima pela crítica a época.

La Divina, como foi consagrada Callas, revolucionou a ópera com seu canto impecável unido à profundidade da interpretação. Em comum, ela, Jacqueline e Diana foram figuras públicas mitificadas e pouco humanizadas em vida. Nenhuma das três se resignou à pressão das normas sociais impostas em seu tempo, e cada uma delas sofreu a seu modo por isso.

A boa recepção dos antecessores pela crítica gerou uma alta expectativa sobre “Maria”, que o filme não parece ter saciado. As opiniões não foram muito animadoras, e o filme já é considerado por muitos o mais fraco dos três.

Para Larraín, o principal intuito dos longas é dissecar aquelas que são simplificadas como musas. “Considero elas pessoas que realmente mudaram a paisagem do último século, e é muito difícil vê-las como o símbolo de só uma coisa”, diz o diretor, por vídeochamada. “Elas são pessoas extremamente humanas.”

No caso de Callas, a maestria com que ela vivia tragédias nos palcos foi condimentada por uma realidade igualmente dramática. Sofreu uma relação conturbada com a mãe, que incentivou seu casamento com um homem 30 anos mais velho, quando ela tinha apenas 26. Mais tarde, se separaria dele para se casar com o magnata Aristóteles Onassis, que a trairia, curiosamente, com Jacqueline Kennedy. Entrou em depressão, perdeu a voz e se viciou em barbitúricos, até morrer, aos 53 anos, por parada cardíaca.

É justamente sobre a decadência desses últimos anos que o filme de Larraín se debruça. Callas vive na companhia do mordomo e da empregada, em um apartamento magnificamente decorado em Paris. Obcecada em voltar a cantar com uma garganta que já não segue seus comandos, desconta sua angustia na posição do piano da sala, que pede constantemente para ser mudado de lugar.

Em suas caminhadas por uma Paris de cores vívidas, como se estivesse sob um filtro de Kodachrome, filme popular na década de 1970, a Callas de Jolie tem delírios medicamentosos e flashbacks de seu passado, estimulados pelas perguntas de um repórter com quem ela alucina. “É a Maria falando com ela mesma, com alguém que ela desejaria ter conhecido como jornalista, uma pessoa cuidadosa que talvez ela nunca tenha conhecido. Ela tinha uma relação complicada com a imprensa”, lembra Larraín.

La Divina foi perseguida por paparazzis em uma época em que a imprensa era particularmente cruel com as mulheres e curiosa pela sua decadência. Seu auge foi, ainda, nas décadas de 1950 e 1960, quando televisões, rádios, jornais, revistas e propagandas estavam a todo vapor, e a indústria de massa passou a influenciar a opinião pública de forma inédita.

A impossibilidade de uma vida privada ainda é a sina de muitas celebridades, quase 50 anos após a morte de Callas -a personalidade da soprano, assim como os detalhes de sua vida, permanecem um mistério. Jolie é um exemplo da sede dos tabloides hollywoodianos, e sua separação de Brad Pitt foi escrutinada por manchetes desde seu anúncio, em 2016.

“Maria”, inclusive, quebra um hiato de três anos da atriz vencedora do Oscar por “Garota, Interrompida”, de 1999. Depois de encarnar a heroína Lara Croft na adaptação para o cinema do jogo “Tomb Rider” e ser celebrada pela crítica por “A Troca”, de Clint Eastwood, o último grande sucesso de Jolie foi em 2014, quando encarnou a vilã de chifres dos contos de fada em “Malévola”.

Apesar de ser uma das atrizes mais famosas de Hollywood, Jolie é reservada em entrevistas. Em entrevistas que deu para promover “Maria”, ela disse se identificar com a solidão de Callas, em certa medida, e que assim como a soprano, ela não se sente sempre confortável em ser uma pessoa pública.

Para representar La Divina, Jolie teve aulas de canto por sete meses e aprendeu árias de mestres da ópera como Giacomo Puccini e Giuseppe Verdi -além de decorar os trejeitos de Callas, como um gesto suplicante de levar as longas mãos magérrimas próximas ao rosto para atingir as maiores notas.

A atriz, porém, não teve sorte com a concorrência. O que não falta nesta temporada de premiações são competidoras de peso para a categoria de melhor atriz, com Nicole Kidman, Demi Moore, Karla Sofía Gascón e Fernanda Torres, que levou o Globo de Ouro. Uma vaga para concorrer ao Oscar, então, parece uma nota ainda mais difícil de ser atingida por Jolie.

MARIA
– Onde Nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Elenco Com Angelina Jolie, Pierfrancesco Favino e Alba Rohrwacher
– Direção Pablo Larraín

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