SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma ação civil pública ajuizada na Justiça federal dos EUA há dez dias tem tudo para transformar um prazer gastronômico -o de comer chocolate- num debate político e indigesto.
A ação pretende levar ao banco dos réus sete das maiores fabricantes de chocolate do planeta por ligações com o tráfico de crianças e a exploração do trabalho infantil na África Ocidental, não raro em condições análogas à escravidão.
Nestlé, Mars e Hershey, além de Cargill, Mondelez, Olam e Barry Callebaut, foram citadas na peça elaborada pela organização de direitos humanos International Rights Advocates (IRA).
A autora da ação representa oito jovens do Mali que afirmam ter sido sequestrados para a vizinha Costa do Marfim e forçados a trabalhar em fazendas de cacau em condições degradantes e perigosas, como o uso de facões e a aplicação de pesticidas.
A Costa do Marfim é uma das maiores produtoras de cacau do mundo, ao lado de Gana. Juntos, os dois países africanos somam cerca de 60% da produção mundial de cacau, principal matéria-prima do chocolate.
Essa é a primeira vez que a indústria do chocolate é alvo deste tipo de ação no sistema de Justiça dos EUA. Outro processo, aberto em 2005 contra Nestlé e Cargill, foi arguido na Suprema Corte americana em dezembro de 2020. Mas a ação civil pública de agora argumenta que seus demandantes representam “milhares de outras crianças e jovens” daquela região da África.
O texto argumenta também que essa ação não poderia ocorrer no Mali -a terra natal das vítimas hoje governada por uma junta militar após golpe em agosto de 2020- porque não há legislação local que permita a eles a busca de reparação contra corporações internacionais. O documento alega ainda que a causa não poderia acontecer também na Costa do Marfim, “onde o sistema de Justiça é notoriamente corrupto e incapaz de responder ao clamor de crianças estrangeiras contra grandes corporações do chocolate que geram receitas para o país”.
Segundo o IRA, há décadas as gigantes do chocolate globalizado se beneficiam de um sistema de exploração infantil, sustentado num regime semelhante ao do trabalho escravo, para ampliar margens de lucro sem a respectiva responsabilização.
“Desde 2001, essas empresas não podem fugir das evidências esmagadoras de suas relações comerciais com fazendas de cacau que escravizam crianças”, afirma Terrence Collingsworth, diretor-executivo do IRA.
Naquele ano, lembra Collingsworth, algumas dessas empresas assinaram o protocolo Harkin-Engel, um acordo internacional liderado por senadores democratas no qual as empresas admitiam o problema e se comprometiam a erradicar as piores formas de trabalho infantil de sua cadeia produtiva até 2005.
Vinte anos depois, aquela realidade pouco mudou e o compromisso das empresas com a mudança dessas violações de direitos humanos teve prazo prorrogado, a pedido das mesmas, por três vezes.
“Agora dizem que vão reduzir em 70% o uso de crianças escravizadas só até 2025”, aponta o diretor do IRA. “Ao fazer isso, essas empresas fornecem um apoio substancial às fazendas escravagistas, incitando a continuidade dessa prática horrível.”
Os esforços das companhias em identificar a origem de sua matéria-prima e monitorar o cumprimento de certos parâmetros e de boas práticas para sua colheita parecem um objetivo ainda distante.
Um estudo encomendado pelo Ministério do Trabalho dos EUA ao Centro de Pesquisa em Opinião Nacional (Norc, na sigla em inglês), da Universidade de Chicago, apontou que 1,56 milhão de crianças de 5 a 17 anos trabalhavam em fazendas de cacau na Costa do Marfim e em Gana entre 2018 e 2019. Elas representam 43% das crianças e adolescentes dos dois países da África Ocidental.
O estudo avaliou também os esforços para a redução do trabalho infantil no setor do cacau na região e concluiu que áreas que foram algo de múltiplas intervenções tiveram melhoria nos dados. Mas que o aumento do envolvimento de crianças no setor do cacau nas áreas não contempladas pelas intervenções foi tamanha que o saldo é negativo.
Segundo o estudo do Norc, a prevalência de trabalho infantil na produção de cacau na Costa do Marfim e em Gana aumentou 14 pontos percentuais entre os biênios 2008-2009 e 2018-2019, período em que a produção de cacau aumentou 62%. A quantidade de crianças envolvidas em atividades perigosas nessas fazendas de cacau aumentou 13 pontos percentuais no período.
A Mars, produtora dos populares M&Ms, afirma conseguir rastrear a origem de 33% do cacau que utiliza em seus chocolates até as fazendas onde ele é colhido.
Uma investigação do jornal americano The Washington Post calculou que, em 2019, a indústria global do chocolate movimentava anualmente US$ 103 bilhões em vendas e que, em 18 anos, o setor havia investido pouco mais de US$ 150 milhões no combate ao trabalho infantil e degradante.
Procuradas, todas as empresas afirmaram condenar o trabalho infantil e degradante, bem como as violações de direitos humanas aliadas a eles, e apontaram para iniciativas de combate a esse tipo de exploração infantil protagonizadas por cada uma delas.
A Hershey, em nota, afirmou ter o “compromisso de acabar com isso” e acreditar que eliminar essas violações de direitos humanos, “de maneira eficaz, e abordar a questão subjacente da pobreza, que é a causa dessas atividades, requer um investimento significativo de intervenção na região da África Ocidental, não nos tribunais”.
A Nestlé, também por nota, informou que está comprometida “com o combate ao trabalho infantil na cadeia de abastecimento do cacau e com a abordagem de suas causas básicas como parte do Nestlé Cocoa Plan e por meio de esforços colaborativos”. E afirmou que “o trabalho infantil é um problema global complexo. Lidar com esse problema é uma responsabilidade compartilhada”.
A Mondeléz, produtora do Toblerone, informou não comentar processos em andamento, mas trabalhar, há anos, “incansavelmente para ajudar a resolver o problema do trabalho infantil. Nossa abordagem se concentra na prevenção, monitoramento e remediação, com foco na educação como um facilitador crítico”.
A Olam declarou ter “tolerância zero com trabalho forçado ou degradante na sua cadeia produtiva”.
A Cargill, em nota, afirmou estar “acelerando nossos esforços para lidar com as causas raízes do trabalho infantil”.
A Barry Callebaut informou que o problema do trabalho infantil “é complexo e multifacetado”, relacionado a questões estruturais como pobreza e falta de acesso a serviços básicos, como água e educação. E afirmou que mantém um código do produtor com parâmetros que condenam o trabalho infantil.
A Mars, por meio de nota, declarou que não comenta processos judiciais e que trabalha “com governos, fornecedores, comunidades agrícolas e outros para tentar prevenir e remediar esses problemas na cadeia de fornecimento do cacau”.
Especialistas avaliam que a indústria global do chocolate se mexeu pouco para alcançar maior rastreabilidade da sua cadeia produtiva e que serão necessárias ações estruturantes para reverter as forças econômicas que arrastam crianças de uma das regiões mais pobres do mundo para o trabalho duro nas fazendas de cacau.
Segundo o texto da ação ajuizada nos EUA, a denúncia feita pelas ex-crianças escravizadas quer “não só expor crimes do setor do cacau mas também desmantelar a fonte de seus lucros significativos: mão de obra barata adquirida por meio do tráfico infantil. Eles esperam também que, ao falar publicamente sobre os horrores do tráfico e da escravidão infantil, possam educar melhor o público, consumidores e membros do governo”.
Os meninos alegam terem embarcado num ônibus no Mali, iludidos por promessas de trabalho bem remunerado, e terminado do outro lado da fronteira, na Costa do Marfim, em fazendas de cacau onde atuavam sem remuneração e eram sujeitos a alimentação e abrigo precários.
Informes da indústria do chocolate avaliam que o setor vai sofrer mudanças em 2021 a partir do aumento da consciência dos consumidores sobre aquilo que escolhem comer de acordo com parâmetros de ética e sustentabilidade.
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