Segurança no RJ vive crises sucessivas com ações sem eficácia

(FOLHAPRESS) – A escalada de violência no Rio de Janeiro desta semana e a resposta das autoridades repetiram o roteiro das sucessivas crises na segurança pública fluminense. O caos instalado na zona oeste da cidade em represália à morte de um miliciano teve como reação a volta do discurso de “inimigo número um do estado”, incorporado pelo governador Cláudio Castro (PL), e a promessa de mais apoio do governo federal.

É um passo a passo seguido há, pelo menos, três décadas e que começou com o envio das Forças Armadas na Operação Rio, em 1994: o estado enfrenta uma onda de violência motivada pelo crime organizado; o governo estadual promete o fim dos criminosos e o federal oferece reforço.

Desde então, diversas políticas públicas de combate ao crime foram adotadas de forma ineficaz, conforme apontam especialistas. Um movimento pendular que vai do policiamento comunitário sem estrutura às operações letais com graves efeitos colaterais. Adiciona-se a isso investimentos apenas em força, não em inteligência, e casos frequentes de corrupção policial.

“O governo optou por uma política de operações. Mas o problema é que, em qualquer lugar do mundo, operações não produzem controle sobre território e população. Dão apenas um resultado pontual e geram escassez da própria capacidade repressiva, pois consomem elevado número de recursos, de pessoal e financeiro”, diz a gestora pública Jacqueline Muniz, que participou da criação do ISP (Instituto de Segurança Pública do Rio) e da Corregedoria-Geral Unificada das Polícias, extinta em 2019.

APOIO FEDERAL

Nesta semana, após os ataques que paralisaram a cidade e deixaram um prejuízo de R$ 38 milhões, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu reforçar a atuação da Força Nacional no estado.
Desde o início do mês, 570 agentes foram deslocados ao Rio de Janeiro -300 da Força Nacional de Segurança e 270 da Polícia Rodoviária Federal. A Polícia Federal também foi acionada para reforçar as investigações contra o crime organizado.

Não foi, porém, a primeira vez que Lula mobiliza a Força Nacional para o Rio. Há 16 anos, em janeiro de 2007, o petista autorizou que a tropa fosse ao estado após, no mês anterior, facções criminosas realizarem a mais grave onda de ataques -que incluiu disparos contra o Palácio Guanabara, sede do governo fluminense. Os incêndios a ônibus e ofensivas contra bases policiais deixaram 18 mortos e 32 pessoas feridas.

Naquele ano, tomava posse como governador Sérgio Cabral, que implementou o projeto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). Era uma iniciativa de instituir polícias comunitárias nas favelas, mas que faliu uma década depois.

Novos ataques a ônibus em novembro de 2010, também promovidos por facções criminosas, levaram o governo Cabral a expandir as UPPs às grandes favelas, promovendo a ocupação do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro. A ação contou com o apoio das Forças Armadas. As cenas dos criminosos fugindo pela mata de uma comunidade para outra tiveram repercussão internacional.

Ainda assim, o envolvimento dos militares se tornou mais constante no Rio. As forças de segurança estaduais passaram a contar com as tropas federais para concretizar ocupações e assumir policiamento da área até a instalação das UPPs.

Porém, o projeto das Polícias Pacificadoras sofreu desgastes ao longo dos anos pelos excessos cometidos contra a população das favelas e pela suspeita de envolvimento policial com facções criminosas. Um dos casos mais notórios foi o desaparecimento do pedreiro Amarildo, na Rocinha, cuja suspeita recai sobre os agentes da UPP do bairro.

A crise financeira pela qual o estado passou a partir de 2014 também tornou inviável a manutenção das bases espalhadas em favelas das zonas norte e sul, evidenciando a falta de planejamento na expansão do projeto, pressionado pelo sucesso político da marca.

Aos poucos as UPPs foram abandonadas até 2017, quando as Forças Armadas foram, de novo, mobilizadas para atuar na segurança pública do Rio de Janeiro. O então presidente Michel Temer assinou o decreto de GLO (garantia da lei e da ordem).

A atuação das Forças Armadas foi fortalecida com a intervenção federal na segurança pública do estado, decretada em 2018 e comandada pelo general Walter Braga Netto. O período ficou marcado pelo então recorde na letalidade policial. No mesmo ano, a vereadora Marielle Franco foi executada a tiros. Apesar de os suspeitos do assassinato terem sido presos e um deles ter confessado o crime, a polícia não conseguiu chegar ao mandante.

“As medidas citadas passaram ao largo da questão decisiva, que sem ser enfrentada não haverá avanço consistente e sustentável. Me refiro à degradação institucional das polícias fluminenses, que são refratárias à autoridade do governo estadual e nunca se submeteram ao controle externo do Ministério Público”, afirma o ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares.

INIMIGO NÚMERO 1 E FORTALECIMENTO DO CRIME

Ao mesmo tempo que contava com o apoio do governo federal no combate ao crime, o governo estadual endurecia o discurso e apostava numa estratégia de pulso firme -cujo resultado foi o oposto que almejava.

No nascedouro do fortalecimento das facções criminosas, a gestão Marcello Alencar (1995-1998) adotou a chamada “gratificação faroeste”. Formalmente para premiar “atos de bravura”, o decreto acabou estimulando ações letais da polícia e beneficiando até mesmo aqueles que viriam a ser envolvidos com grupos de extermínio, como os ex-PMs Ronnie Lessa, preso pela morte de Marielle, e Adriano da Nóbrega, morto em 2020 e apontado como chefe do Escritório do Crime.

Esses mesmos grupos de extermínio, formados por agentes de seguranças e ex-policiais, deram origem às milícias. Sob alegação de trazer mais segurança ao território, como uma força paralela ao estado, os grupos passaram a ocupar comunidades e bairros. Com o tempo, começaram a cobrar taxas extras e a extorquir dinheiro dos moradores. Hoje, estão também envolvidos no tráfico de drogas e armas.

No atual governo, apesar de Castro afirmar que tem dado um “duro golpe” nas milícias, os números mostram o oposto. Segundo estudo da UFF (Universidade Federal Fluminense) e do instituto Fogo Cruzado, 57,5% do território da capital fluminense está nas mãos da milícia.

Já o tráfico controla 15,4%, e pouco mais de um quarto, 25,2%, está em disputa pelos grupos armados.

“Esse tipo de criminalidade, que depende do domínio armado do território, é a característica da violência no Rio e tem sido erroneamente combatido, sempre focando no varejo. As operações, com alta taxa de letalidade, não têm tido o efeito de desarticular esses grupos. Pelo contrário, têm fortalecido eles”, afirma Silvia Ramos, coordenadora do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania).

A “linha dura” das operações foi reforçada pela gestão Wilson Witzel, eleito após defender durante a campanha o “abate de criminosos”. Em seu primeiro ano de gestão, bateu o recorde de letalidade policial registrado durante a intervenção federal. No período, os agentes do estado foram responsáveis por mais de um terço (35%) das mortes violentas.

Castro assumiu após o impeachment de Witzel manter a defesa das operações policiais, ainda que sem a verborragia do antecessor. Sua administração, porém, ficou marcada pelas três operações policiais mais letais da história do estado.

“A alta letalidade da ação policial no Rio de Janeiro é uma das características mais fortes e mais marcantes das políticas de segurança no estado há muitos anos. Essa característica não tem sido enfrentada de uma forma efetiva”, diz Ramos.