O que Wordle e Termo têm a ver com anticapitalismo e com arte contemporânea

EDUARDO MOURA
BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) -O Wordle é um joguinho online de adivinhar palavras em inglês que tomou a anglofilia de assalto. Os lusófonos logo ganharam sua versão, o Termo, que segue o mesmo esquema –uma palavra de cinco letras que deve ser adivinhada em até seis tentativas, uma partida por dia.

Depois de conversar com Josh Wardle, criador do Wordle, o New York Times cravou que aquele joguinho era fruto de uma história de amor –de Wardle por sua mulher, Palak Shah, alucinada por jogos envolvendo palavras.

Já a versão brasileira do Wordle é fruto do amor de um engenheiro por sua língua materna, ainda carente de games de vocabulário.

Mas se Josh ama Palak, que ama joguinhos de palavra, que são amados pelos americanos, que amaram o Wordle, que conquistou falantes de outras línguas, que amaram suas traduções, a relação dos brasileiros com esse tipo de game não é tão próxima, na opinião do pai do Termo, Fernando Serboncini, e de Thiago Falcão, referência na pesquisa de jogos no Brasil.

Ainda que por aqui seja popular o jogo da forca, é difícil se comparar com os americanos e sua forte cultura de concursos de soletração e jogos de tabuleiro como o Scrabble.

“Esses joguinhos de palavras são muito tradicionais no campo dos videogames”, diz Thiago Falcão, que acrescenta que esse tipo de puzzle “sempre foi um déficit, sempre foi uma coisa que não apareceu”. “Esses jogos de vocabulário são tradicionais entre os americanos, ao passo em que a gente não vê muito isso aqui.”

Serboncini desenvolveu o Termo inspirado por Josh Wardle e publicou o game há pouco mais de duas semanas. Ele diz que enviou o jogo para apenas dois amigos e que “uma hora depois, tinha 10 mil pessoas jogando”, conta. Hoje, são cerca de 175 mil jogadores diários, diz o engenheiro, a maioria deles do Brasil e de Portugal.

“A grande maioria dos jogos de palavras desenvolvidos por desenvolvedores independentes nunca é lançada em português, pois esses jogos precisam de um dicionário -na verdade, uma lista de palavras, um léxico- e infelizmente não existe um dicionário de qualidade disponível e aberto em português. Isso foi uma coisa que sempre me incomodou, já que é comum que esses jogos sejam lançados em inglês, francês, espanhol e alemão, mas não em português”, diz Serboncini.

“Achei que essa poderia ser a oportunidade de resolver o problema de ter um dicionário. Daí, construí um dicionário de português e desenvolvi o jogo”, diz o engenheiro.
A ideia é que o tal dicionário que Serboncini construiu para Termo seja disponibilizado para que outras pessoas possam fazer jogos de palavras em português, sejam eles quais forem.
“Para qualquer jogo de palavra -tipo Scrabble, Termo, ou mesmo um caça-palavras- você precisa de uma base de dados com as palavras na língua. No caso do português, não existe essa base de dados disponível gratuitamente”, explica. “Você pode comprar, por exemplo, do Houaiss, ou de outros dicionários, mas custa às vezes mais de R$ 10.000, o último número que eu vi, e tem várias restrições legais.”
Serboncini não esconde sua admiração por Josh Wardle. “Ele é um cara genial”, diz.

A genialidade de Wardle não vem só do joguinho de palavras. Ele também é autor de alguns célebres experimentos sociais no Reddit, como “Place” e “The Button”.

No primeiro, de 2017, uma tela virtual branca, um quadrado composto por 1 milhão de pixels, foi posta à disposição dos usuários do Reddit, que puderam preencher um pixel com uma cor de sua escolha, entre as 16 da paleta disponibilizada -mas cada usuário só poderia colorir um pixel a cada cinco minutos, no máximo.

O resultado foi uma colcha de retalhos digital, repleto de referências à cultura pop. “Place” durou 72 horas e foi chamado de “o melhor experimento já feito na internet” pela Newsweek.

‘Já “The Button” é um pouco mais antigo, de 2015, e consistiu num timer de 60 segundos em contagem regressiva. Toda vez que um usuário apertava o botão, a contagem voltava para 60. O objetivo tácito era conseguir apertar esse botão na menor contagem possível, sem que nenhum dos outros milhares de usuários simultâneos entrasse na sua frente e estragasse sua festa -segundo o site Vox, o contador nunca chegou a um número menor que 27 segundos.

Os usuários do Reddit que apertavam o botão então ganhavam uma espécie de selo em seus nomes de usuário, variando de cor dependendo da contagem de segundos que conseguiam alcançar, sendo os amarelos aqueles que tinham as contagem menores e os que davam mais “status” ao usuário -algo mais ou menos semelhante à lógica de perfis verificados nas redes sociais. Nesse sentido, “The Button” brincava com vaidade e competição, sem que houvesse ali um objetivo claro.

À NBC, Josh Wardle disse que preferia entender aquilo como um projeto de arte ou experimento social. “Eu não tinha nenhum objetivo ou expectativa. Eu só queria publicar aquilo e deixar a comunidade do Reddit decidir o que fazer”, disse.

Wardle hoje trabalha no coletivo de arte digital MSCHF, que tem em seu portfólio os tênis satânicos de Lil Nas X, obras de arte em forma de plugin de navegador de internet, além de campanhas de TikTok recheadas de críticas ao capitalismo -o Clube de Propagandas Antipropaganda, sob o slogan “seja pago para matar marcas”, pagava usuários para achincalhar empresas, da Amazon à Tesla, inclusive o TikTok.

Embora supostamente despretensioso, o Wordle, filho de pai artista, acaba tendo em seu DNA um quê de experimento e crítica social. Uma das principais características do jogo é o fato de o usuário só poder jogar uma partida por dia.

Numa época de games de celular propositalmente viciantes, sedentos por monetização e microtransações e que cospem propaganda na cara do usuário o tempo todo, um joguinho que proíbe que o jogador gaste mais do que cinco minutos por dia com ele é sem dúvidas um outlier em pleno 2022.

“Acho que faz sentido pensar [o Wordle] como uma coisa meio happening anticapitalista, por um lado. Por outro lado, tem um componente diário, de você ter que voltar lá diariamente, de completude. Ao mesmo tempo que tem uma coisa anticapitalista, tem uma coisa de se adequar aos padrões”, diz Thiago Falcão, que também é professor da Universidade Federal da Paraíba.

Além do jogo em si, é comum que os usuários publiquem nas redes sociais um mosaico mostrando a sua jornada para acertar a palavra do dia. Aí, o lado de experimento fica mais aparente.
“Tem uma dimensão social de fazer parte de um grande grupo, mostrar que você está jogando aquilo. Não é só jogar, você tem que postar no seu Twitter”, diz o professor.

“Eles [Wordle e Termo] são quase brinquedos para fortalecer sua imagem na rede social, é uma coisa de gerenciamento de impressão mesmo, porque mostra que você tem um domínio da língua, parece uma coisa intelectual”, completa.

“Esse fenômeno me parece o mesmo dos jogos de redes sociais das antigas. Todo mundo compartilhando seus convites e seus scores até que chegou a um ponto em que ninguém mais aguentava aquilo –e provavelmente isso vai acontecer em algum momento com o Wordle e com o Termo”, opina Falcão.

“Tudo passa, né?”, diz o criador do Termo. “O joguinho está famoso agora, continua crescendo, mas eventualmente as pessoas vão cansar. E tudo bem”, prevê o brasileiro.

Para ele, o que importa, para além do sucesso momentâneo, é que seu trabalho pode contribuir para que a lusofonia deixe de ser o patinho feio dos jogos de palavras. “Se a gente consegue deixar as coisas um pouco melhores do que antes, já valeu a pena.”

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