MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Se 2020 tivesse sido um ano normal, daquele velho normal, por esses dias estaríamos lembrando alguma celebridade olímpica superando recordes, megashows e exposições, discursos em grandes eventos públicos, aquela viagem memorável de férias, protestos nas ruas, conflitos entre países, ilustres mortos.
Ainda que muitas dessas cenas tenham acontecido, a retrospectiva deste ano é muito menos diversa que as anteriores. Quase tudo girou em torno do coronavírus, oficialmente identificado pela OMS em 31 de dezembro de 2019, após relatos vindos de Wuhan, na China, de uma estranha onda de “pneumonia viral”.
Nas semanas seguintes, começaram a aparecer notícias de contaminados pela “doença respiratória misteriosa” –assim foi o título do primeiro registro do jornal Folha de S.Paulo, em 17/1–, que passou a ser a Covid-19, causada pelo Sars-Cov-2, “o novo coronavírus”, que, enfim, virou apenas “o vírus”.
Na mesma velocidade em que se tornava famoso, ia cancelando tudo pela frente. A partir de março, sua circulação foi escancarada no Ocidente, e o patógeno interrompeu desde planos individuais até os maiores eventos globais. Por fim, dominou o debate –passamos 2020 falando dele.
O brexit, protagonista de antes, não deixou de existir, mas recebeu poucos holofotes. A separação entre Reino Unido e União Europeia foi oficializada em 31 de janeiro, mesmo dia em que a Itália declarou estado de emergência depois de um casal de Wuhan receber diagnóstico de Covid-19 após testes feitos em Roma.
Naquela data, começou o período de transição, durante o qual o governo britânico e o bloco europeu deveriam negociar e definir os detalhes das regras que vão reger a nova relação. O acordo só foi alcançado na véspera do Natal, uma semana antes do fim do prazo e depois de muita incerteza se ele realmente ocorreria, o que fez surgir a dúvida: teria o vírus atrapalhado o brexit?
“A pandemia sem dúvida interferiu nas negociações”, afirma Justin Frosini, professor de direito público comparado na Universidade Bocconi, em Milão. “Para a União Europeia, o brexit, até fevereiro, era a coisa mais importante do ano”, diz. “Inevitavelmente, o coronavírus deixou a UE alheia a outros acontecimentos.”
Para ele, ainda que essa negociação fosse difícil em qualquer situação, a pandemia interferiu no ritmo das tratativas, já que os negociadores-chefes, o britânico David Frost e o francês Michel Barnier, foram contaminados pelo vírus, forçando interrupções.
Além disso, a transferência das reuniões presenciais para as videoconferências pode ter deixado tudo ainda mais frio. “Não houve a possibilidade de tantas conversas pessoais, um momento mais descontraído, uma conversa frente a frente e a sós entre Bernier e Frost.”
Não só o brexit ficou sumido em grande parte do ano. Greta Thunberg, a ativista sueca de 17 anos que espalhou protestos contra a mudança climática por mais de 7.000 cidades, não poderia imaginar que não só os colégios ficariam fechados como as aglomerações se tornariam um dos maiores focos de contaminação.
Difícil, ao ver uma máscara jogada no chão ou a quantidade de embalagens dos pedidos de comida, não pensar que a emergência climática ganhou novas camadas.
O vírus levou os protestos ambientais para o mundo virtual, fazendo com que perdessem visibilidade, e obrigou o adiamento de eventos importantes, como a Conferência do Clima da ONU. Chamado de COP-26, o encontro deveria ter ocorrido em novembro em Glasgow, na Escócia, mas foi empurrado para 2021.
Nessa área, era um dos acontecimentos mais aguardados desde que o Acordo de Paris foi selado, há cinco anos, pois é nessa conferência que os países devem atualizar compromissos –espera-se que de forma mais ambiciosa– para reduzir a emissão de carbono.
Menos mal que a pandemia deu uma compensada. Com as quarentenas decretadas, houve diminuição drástica de deslocamentos e, em alguns países, da atividade industrial. A estimativa é que as emissões de CO caiam até 7% na comparação com 2019.
As viagens de avião foram arruinadas pelo vírus. Segundo boletim de novembro da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), o número de passageiros vai desabar 60% em 2020, com “somente” 1,8 bilhão de viajantes, mesmo volume de 2003.
“Reduzi muitíssimo as minhas viagens. Segundo meus programas de milhagem, em cerca de 90% a 95%”, conta o arquiteto italiano Carlo Ratti, que tem escritório em Turim (Itália), filiais em Nova York e Londres e trabalha no MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos EUA.
Assim, o 2020 de Ratti foi se transformando, com queda de projetos e surgimento de outros, como as UTIs criadas em contêineres. Um dos maiores com a sua assinatura, o pavilhão da Itália na Exposição Universal de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, acabou adiado para outubro de 2021.
O evento, que ocorre a cada cinco anos em uma cidade diferente, é um colosso: tem seis meses de duração, participação de mais de 190 países e custos estimados em mais de US$ 8 bilhões. A expectativa, antes do vírus, era atrair 25 milhões de visitantes –três milhões a mais do que a feira anterior, em Milão.
Se o vaivém profissional foi afetado, o que dizer das viagens de lazer? Segundo a Organização Mundial do Turismo, agência da ONU, foram 900 milhões de turistas internacionais a menos de janeiro a outubro, na comparação com o ano precedente, queda de 72%, levando o setor a patamares de 30 anos atrás.
Os países se fecharam, o tráfego aéreo diminuiu bruscamente, e atrações foram desprogramadas. Outra vítima foi a Olimpíada de Tóquio, um dos adiamentos mais dramáticos ao acabar com a preparação de 11 mil atletas.
Um impacto que também será financeiro, já que o atraso de um ano vai custar aos japoneses mais US$ 2,8 bilhões, que se somam aos gastos do que deve ser a Olimpíada de verão mais cara da história.
E, se até esses grandes projetos foram derrubados pelo vírus, é difícil agora pensar que o Natal e o Ano Novo pudessem ter resistido. Na Europa, países como Alemanha, Itália, Espanha, França, Reino Unido e Holanda adotaram série de medidas, de toques de recolher a lockdowns nacionais, para limitar deslocamentos e comemorações e evitar que o período de festas faça subir ainda mais os contágios.
Mas, segundo a filósofa e escritora Michela Marzano, esse cancelamento tem significado mais profundo, por mexer com rituais. “Depois de tudo, praticamente um ano de pandemia, nós todos esperávamos poder viver um Natal ‘normal’. Gostaríamos de vivê-lo como um momento de reencontro e recomeço.”
Para Marzano, professora na Universidade de Paris-Descartes, a pandemia nos leva de volta à realidade, após anos em que deslocamentos foram vividos com intensidade. “Do ponto de vista filosófico, é a prova do fato de que tem coisas que não podemos controlar.”
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