SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um garoto sem camisa dança no quarto quando, de repente, uma mudança de batida na música guia um corte no vídeo e, no segundo seguinte, ele está usando terno e gravata. Uma garota dá dicas de como reconhecer uma menstruação normal. Um homem enumera guloseimas argentinas que não existem mais.
Em comum, todos esses vídeos curtos, postados no TikTok e com milhões de curtidas, têm a trilha sonora da música “Gimme! Gimme! Gimme! (A Man After Midnight)”, que o Abba lançou em 1979. E ela não é a única.
“Mamma Mia”, “Dancing Queen”, “Money, Money, Money” e “Chiquitita”, entre outros sucessos do grupo sueco, estão entre as músicas preferidas dos usuários da plataforma. Vídeos com músicas do Abba somam mais de 2 bilhões de visualizações no TikTok.
O sucesso de músicas de 40 anos atrás entre os jovens é só um dos sintomas da longevidade da obra do Abba, que na última sexta-feira fez um dos mais improváveis retornos do pop em todos os tempos. O grupo, que estourou nos anos 1970 e acabou em 1982, lançou “Voyage”, um disco inteiro de músicas inéditas, depois de quase quatro décadas ininterruptas de inatividade. Com exceção dos vocais, hoje mais graves e naturalmente menos potentes que no auge da banda, o novo álbum soa exatamente como uma continuação da estética do grupo.
Das guitarras cheias de eco aos sintetizadores com sabor de anos 1980, passando pelas vozes simultâneas de tom épico e a candura dos arranjos de cordas, é como se as quatro cabeças por trás do Abba tivessem ficado alheias às quatro décadas de mudanças na música pop na Europa e ao redor do mundo.
Na verdade, talvez a grande mudança de 1982 para 2021 seja a percepção em torno das músicas da banda. Formado por dois casais –Agnetha Fältskog, de 71 anos, e Björn Ulvaeus, de 76, e Benny Andersson, de 74, e Anni-Frid Lyngstad, de 75–, o grupo acabou depois que eles se divorciaram, entre 1979 e 1981.
A verdade é que, no começo dos anos 1980, o Abba vivia a dicotomia de ser um sucesso de vendas e uma piada para parte do público e da crítica. Mesmo frequentando as listas de mais tocadas, o quarteto era visto como os grandes representantes de um pop plastificado e alienante, feito sob medida para as massas.
“Quando paramos de gravar, a sensação era de que o Abba estava acabado, que não haveria mais falatório em torno disso”, Ulvaeus disse ao jornal britânico The Guardian há pouco. “Na verdade, estava morto. Era muito cafona gostar de Abba.”
Formado no começo dos anos 1970, o Abba estourou em 1974, quando ganhou o festival Eurovision com a música “Waterloo”. Dali em diante, eles lançaram oito álbuns, empilhando hits nas paradas como “Mamma Mia”, de 1975, e culminando no disco “Arrival”, de 1976, que vendeu mais de 10 milhões de cópias e marcou o auge do grupo, com “Dancing Queen”, “Money, Money, Money” e “Knowing Me, Knowing You”. O quarteto teve outros hits, mas chegou ao fim já sem o mesmo apelo comercial.
Em 1982, a banda anunciou que estava dando só uma pausa, algo que agora soa adequado. “Voyage”, o retorno desta pausa, foi feito às sombras ao longo dos últimos anos. Björn Ulvaeus e Benny Andersson compuseram e gravaram as músicas, e depois Agnetha Fältskog e Anni-Frid Lyngstad entregaram as vozes inconfundíveis.
O anúncio do retorno veio no último mês de setembro, com a criação de uma conta do Abba no TikTok e uma versão ao piano de “Dancing Queen” para os desafios de dancinhas com a música que ainda bombam na plataforma. O comunicado enviado à imprensa na época dizia que eles eram a banda mais requisitada para entrar na rede social.
No novo disco, o Abba segue flertando com a disco music e retoma as baladas que marcaram a banda. Mas as letras estão mais reflexivas. O single “I Still Have Faith In You” parece pesar de maneira singela sobre o legado do Abba –”remos uma história/ e ela sobreviveu”. “Don’t Shut Me Down” traz uma transição perfeita para os vídeos do TikTok, e Fältskog canta que não é a mesma pessoa, que está renovada e mais madura.
Mais do que um comentário sobre a herança da banda, muitas das letras soam como se os ex-casais e amigos estivessem fazendo as pazes com o próprio passado. “Você vai me deixar esperando no hall/ ou me deixar entrar?/ O apartamento não mudou tanto/ Devo dizer que estou contente/ Esses cômodos que já foram testemunhas do nosso amor/ Minha petulância e crescente frustração/ Mas fui de raivosa/ a não tão mal assim em minha transformação”, diz a letra de “Don’t Shut Me Down”.
A passagem do tempo dá o tom de “Voyage”, mas as letras soam leves e pouco cabeçudas, como é a cara do Abba. É como se o quarteto abraçasse todas as pontas de um sentimento anacrônico de nostalgia, que não pertence apenas a quem era jovem nos anos 1970, mas a seus filhos e netos, que continuam ouvindo “Dancing Queen” no rádio, nas festas, no streaming, no TikTok.
Essa é a sensação que o Abba quer evocar com o show em hologramas que a banda anunciou para o ano que vem, em Londres. O quarteto voltou a tocar junto para que seus movimentos fossem capturados e transformados em avatares –ou “abbatares”. Eles não estão com a aparência atual, de quem passou dos 70 anos, mas com as feições e roupas que usavam quatro décadas atrás.
Ainda que os singles de “Voyage” somem dezenas de milhões de visualizações, é improvável que o retorno do Abba dê uma sobrevida ao grupo. Os shows com hologramas são uma maneira de permanecer longe da indústria fonográfica, algo evidente no discurso atual dos integrantes. As mulheres da banda, Fältskog e Lyngstad, só toparam participar da volta se não tivessem de fazer turnês ou dar entrevistas.
Na verdade, tanto o novo disco quanto os shows com hologramas marcam o fim definitivo do Abba, uma despedida digna para um grupo que extrapolou o sucesso momentâneo e hoje está cravado na história como uma entidade da música pop. É a defesa de uma obra que não só sobreviveu, mas ficou ainda maior com a globalização e a passagem dos anos. Ou, como disse Benny Andersson ao jornal The New York Times, com ironia, nada precisa ser provado. “Eles vão continuar tocando ‘Dancing Queen’ no ano que vem.”
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