SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A comunidade LGBTQIA+ do Afeganistão viverá um futuro sombrio sob o novo regime do grupo radical islâmico Talibã, prevê o escritor e ativista afegão Nemat Sadat, 41. “O Talibã não mudou a mentalidade da idade das trevas”, afirma ele, que é gay. “Mesmo que não recorram aos linchamentos públicos que realizavam nos anos 1990, poderão prender pessoas LGBT+ ou matá-las. E ninguém ficará sabendo.”
Sadat falou ao jornal Folha de S.Paulo por videochamada de San Diego, nos EUA, país ao qual chegou como refugiado –mais tarde, naturalizou-se americano. Ainda criança, saiu do Afeganistão no contexto do conflito soviético-afegão (1979-1989), já que a família da mãe dele, ligada à aristocracia pashtun, foi perseguida pelos comunistas. “Vivi a guerra fria dentro de casa”, afirma Sadat.
O escritor voltou ao país natal em 2012, onde iniciou o ativismo em prol dos direitos LGBTQIA+. Perseguido, teve de deixar o Afeganistão no ano seguinte. Desde que o Talibã retomou o controle de Cabul, no último domingo (15), Sadat vem articulando uma operação para tentar retirar pessoas LGBT+ do país.
O afegão é autor de “The Carpet Weaver” (o tapeceiro), lançado na Índia em 2019. O livro conta a história de um jovem gay de origem muçulmana que descobre sua identidade no Afeganistão dos anos 1970.
O que a comunidade LGBTQIA+ afegã deve esperar do regime talibã?
NEMAT SADAT – Enquanto todas as câmeras do mundo estiverem viradas para o Talibã, eles tentarão passar uma imagem de moderados. Mas quando deixarem de ser o foco poderão fazer o que quiserem. Mesmo que não recorram aos linchamentos públicos dos anos 1990, poderão prender pessoas LGBT+ ou matá-las, e ninguém ficará sabendo.
O Talibã não mudou a mentalidade da idade das trevas, houve apenas uma modernização cosmética: têm celulares, tiram selfies, são excelentes em conseguir curtidas nas redes. Estão dizendo que a guerra acabou agora que tomaram o poder, mas eles não vão querer fazer as pazes com seus inimigos internos.
O Talibã trata LGBT+ como combatentes inimigos e traidores por considerar que seu modo de vida viola os preceitos do islã. Há LGBTs em toda parte no Afeganistão, assim como no resto do mundo. Há pessoas que estão no armário, outras que vivem sua identidade abertamente, e que agora perderão as liberdades conquistadas. Precisam sair do país urgentemente, e eu quero ajudá-las nisso.
Como o sr. pretende ajudar LGBT+ afegãos neste momento?
NS – Nos últimos dias, recebi nomes de mais de cem pessoas que querem sair do Afeganistão. Estou ativando minha rede de contatos no país e tenho esperança de que nos próximos dias consiga um voo fretado para tirá-las de lá. Não são só os tradutores e outras pessoas que colaboraram com as forças ocidentais que têm o direito de sair do país em segurança.
Devido às mais de quatro décadas de conflito no país, há uma diáspora afegã numerosa em vários cantos do mundo, inclusive no Brasil. Com a volta do Talibã ao poder, teremos uma nova onda de refugiados, mas qual país vai querer recebê-los em meio à pandemia? Se os EUA não ajudarem a comunidade LGBTQIA+ afegã e se recusarem a tirar do país todas as pessoas que querem sair de lá, ficarão manchados para sempre, serão uma vergonha para o mundo.
Até que ponto a ocupação militar liderada pelos EUA ajudou a promover os direitos LGBTQIA+ no Afeganistão?
NS – Por um lado, houve uma abertura após a intervenção externa, as pessoas estudaram e ganharam liberdades. Estávamos avançando aos poucos, conquistando espaços na mídia e gerando um debate inédito no país sobre a homossexualidade e o islã.
Mas os EUA não promoveram direitos LGBTQIA+ no Afeganistão. Os LGBT+ afegãos continuam sendo vítimas de crimes de honra, casamentos forçados, espancamentos, estupros, assassinatos. É prática comum das forças de segurança afegãs –treinadas pelo Ocidente para combater o terrorismo– montar perfis falsos em aplicativos de relacionamento a fim de identificar e capturar homens gays e bissexuais. Tudo isso aconteceu debaixo do nariz da ocupação militar dos EUA e da Otan [aliança militar ocidental].
Comecei o meu ativismo em prol dos direitos LGBTQIA+ no Afeganistão em 2012, quando era professor da Universidade Americana do Afeganistão, instituição ligada ao Departamento de Estado dos EUA. Por ser gay, fui alvo de ameaças e retaliações até ser demitido e ter de sair do país no ano seguinte. Clérigos muçulmanos conservadores emitiram uma fatwa [decreto religioso] contra mim. Nem a universidade nem o governo americano me defenderam.
Agora, os EUA resolveram jogar os afegãos nos braços do inimigo terrorista, é uma desgraça. O presidente Joe Biden disse que os afegãos não tiveram coragem de lutar contra o Talibã, mas a verdade é que eles tiveram coragem de se agarrar a aviões e cair em direção à própria morte por se recusarem a ficar à mercê dos extremistas.
Há um problema de racismo quando se fala de direitos LGBTQIA+ no Afeganistão, dizem “é outra cultura, são muçulmanos, não queremos ser insensíveis”. O país vive hoje o pior cenário imaginável para LGBT+, mas há também a Tchetchênia, o Irã, a Arábia Saudita, a Rússia e vários outros lugares onde lutamos para ter nossos direitos reconhecidos.
RAIO-X
Nemat Sadat, 41
Escritor e ativista afegão radicado nos EUA, é autor de “The Carpet Weaver” (2019). É formado em administração internacional e ciência política pela Universidade da Califórnia e fez cursos de pós-graduação nas universidades Harvard, Columbia, Oxford e Johns Hopkins.
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