BAURU, SP (FOLHAPRESS) – A declaração do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de que as mortes de armênios pelo Império Otomano constituíram genocídio é “simplesmente ultrajante” e receberá uma resposta da Turquia nos próximos dias, disse neste domingo (25) Ibrahim Kalin, conselheiro e porta-voz do presidente Recep Tayyip Erdogan.
O próprio Erdogan deve tratar do tema em uma reunião de gabinete nesta segunda-feira (26), segundo Kalin. “Haverá uma reação de diferentes formas, tipos e graus nos próximos dias e meses”, disse o conselheiro à agência de notícias Reuters.
No sábado (24), dia em que se recordou o 106º aniversário do genocídio, Biden rompeu com décadas de comentários cuidadosamente calibrados de seus antecessores na Casa Branca sobre o cerca de 1,5 milhão de mortes na Armênia a partir de 1915.
“Honramos sua história. Vemos essa dor. Afirmamos a história. Fazemos isso não para culpar, mas para garantir que o que aconteceu nunca se repita”, disse o americano, em uma fala que encontra apoio entre os armênios mas que representa a imposição de obstáculos aos lações entre EUA e Turquia, ambos membros da Otan, a aliança militar do Ocidente.
Kalin não especificou quais serão as medidas que o governo Erdogan pode adotar em retaliação aos EUA, mas existe a suspeita de que, entre outras reações, Ancara pode restringir o acesso de Washington à base aérea de Incirlik, no sul da Turquia. As instalações tem sido usadas para apoiar a coalizão internacional que luta contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque.
“Em um momento e lugar que considerarmos apropriados, continuaremos a responder a esta declaração infeliz e injusta”, disse o porta-voz de Erdogan. Assim que Biden fez sua declaração, o próprio Kalin e outras autoridades do governo turco foram rápidos em condenar a classificação de genocídio.
“Aconselhamos o presidente dos Estados Unidos a olhar para o passado e o presente de seu próprio país”, disse o conselheiro, que viu na fala de Biden “apenas uma repetição daqueles cuja única agenda é a inimizade contra a Turquia”.
O ministro das Relações Exteriores turco, Mevlut Cavusoglu, rejeitou a declaração, baseada, segundo ele, no populismo. “Não temos nada a aprender com ninguém em nosso passado. O oportunismo político é a maior traição à paz e à justiça.”
A pasta comandada por Cavusoglu afirmou ter convocado o embaixador americano em Ancara, David Satterfield, para demonstrar sua insatisfação com a declaração de Biden. “Esta declaração dos EUA, que distorce os fatos históricos, nunca será aceita na consciência do povo turco e abrirá uma ferida profunda que mina nossa confiança mútua e amizade”, afirmou a diplomacia turca, por meio de um comunicado.
As relações entre Ancara e Washington, contudo, estão conturbadas já há algum tempo. O governo americano impôs sanções à Turquia sobre a compra de defesas aéreas russas, enquanto Erdogan acusa os EUA de apoio a “terroristas” pelo suporte dado a milícias curdas, como as Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla em curdo).
“As declarações dos Estados Unidos são deploráveis. Dizem que não apoiam terroristas, mas na verdade estão do lado deles”, disse Erdogan, em um discurso, em fevereiro. “Se estamos juntos na Otan e se querem que a unidade da Otan seja preservada, devemos agir com sinceridade.”
As negativas do governo americano aos pedidos de extradição do clérigo Fethullah Gülen, asilado nos EUA há mais de 20 anos, também têm um gosto amargo para Erdogan. O líder turco acusa Gülen de arquitetar uma fracassada tentativa de tirá-lo do poder em 2016.
Navegar nessas disputas agora será ainda mais difícil, disse Kalin. “Tudo o que conduzirmos com os Estados Unidos estará sob a influência desta lamentável declaração.” Segundo o conselheiro, o Parlamento da Turquia também deve se manifestar sobre o tema nesta semana.
Analistas avaliam que a retaliação dos parlamentares será retórica, classificando como genocídio, por exemplo, o tratamento dado aos indígenas americanos durante o período de colonização.
Segundo Kalin, autoridades americanas disseram às turcas que a declaração de Biden não representa uma base legal para que descendentes das vítimas armênias recorram ao direito internacional em busca de indenizações. No entanto, Erdogan disse a Biden, quando falaram por telefone na última sexta-feira (23), que o americano cometeria um “erro colossal” se prosseguisse com sua declaração.
“Reduzir tudo isso a uma palavra e tentar implicar que os turcos estavam envolvidos, ou que nossos ancestrais otomanos estavam envolvidos em atos genocidas, é simplesmente ultrajante e não tem base em fatos históricos”, disse Kalin.
Oficialmente, a Turquia reconhece que morreram de 300 mil a 400 mil pessoas, mas diz que as mortes teriam ocorrido no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando os armênios apoiavam a Rússia, e não como resultado de uma política deliberada de extermínio.
Assim, o caso não se encaixaria no critério da intencionalidade na definição de genocídio estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. Naquele ano, a entidade determinou que seriam considerados genocídios “quaisquer atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
Entre tais atos, a ONU prevê não apenas assassinatos, mas também o ato de causar sérios danos físicos ou mentais, infligir deliberadamente condições de vida para provocar destruição física, impor medidas destinadas a prevenir nascimentos dentro de um determinado grupo e transferir crianças de um grupo a outro.
Erdogan é um negador fervoroso do genocídio e já distribuiu críticas a outros líderes mundiais que descreveram as mortes na Armênia dessa forma, incluindo o papa Francisco.
A negação do genocídio está, inclusive, nos livros didáticos da Turquia, que descrevem os armênios daquele período como traidores. Cidadãos turcos que optarem pelo uso do termo podem ser processados criminalmente, sob acusação de difamar o país.
A maioria dos historiadores, no entanto, reconhece que houve uma política de Estado nas mortes e veem esse episódio da história armênia como o primeiro genocídio do século 20, opinião reforçada pela Associação Internacional de Acadêmicos do Genocídio. Há, inclusive, especialistas turcos que concordam com essa posição.
A violência contra os armênios começou durante o início da dissolução do Império Otomano. Alinhados com a Alemanha na Primeira Guerra, os otomanos queriam impedir que os armênios se aliassem à Rússia e ordenaram deportações em massa.
A estimativa da Armênia é que 1,5 milhão de pessoas tenham morrido de fome, assassinados por soldados otomanos ou pela polícia. Centenas de milhares de sobreviventes, forçados a deixarem seu território, buscaram refúgio na Rússia, nos EUA, no Brasil e em diversos outros países.
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