Casal de mulheres relata processo de fertilização in vitro

JULIANA MATIAS
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em novembro do ano passado, a cantora Ludmilla e a dançarina Brunna Gonçalves, casadas desde 2019, anunciaram que estão passando por um processo de fertilização in vitro para ficarem grávidas.

A técnica também foi a opção escolhida por Lizandra Hachuy, 43, e Mariana Castello Branco, 42, na gestação de dois dos quatro filhos do casal.

Na fertilização in vitro, quando o processo é feito em um casal em que as duas pessoas nasceram com os órgãos reprodutores femininos, o óvulo de uma delas é coletado e fertilizado com o sêmen de um doador em um ambiente externo ao útero. Após a fecundação, o embrião é transferido para o útero da pessoa que vai gestá-lo. Já na inseminação artificial, o sêmen do doador é depositado artificialmente na cavidade uterina.

Para Lizandra e Marina, porém, a maternidade vai muito além da genética e do processo biológico, e está relacionada ao cuidado e ao desejo de ser mãe.

Os outros dois filhos do casal não vieram da fertilização in vitro, mas do antigo relacionamento de Mariana. “Eu já vinha de um casamento que estava ‘respirando por aparelhos’, e aí eu me vi apaixonada por uma mulher, que foi algo que nunca passou pela minha cabeça até conhecer a Liz”, diz.

Lizandra conta que “antes de conhecer a Mari, eu achava que eu não podia ter uma família, porque eu era lésbica”. No começo, ela era chamada pelas crianças de “tia Liz” e não se permitia ser vista também no papel de mãe. “Eu só consegui ser mãe da Manu e do Miguel. Até que desfiz meu próprio preconceito de que eu não poderia, mesmo querendo uma família. Chegar na posição materna, para mim, foi um processo, foi uma adoção mesmo deles, foi uma autopermissão”, afirma.

Ela entende que esses preconceitos estão relacionados à romantização da maternidade. “Tem esse lugar da maternidade santificada, beatificada. ‘Ai, que lindo, tem duas mães!’ Mas por trás disso é um lugar terrível de: ‘Nossa, elas transam uma com a outra, são lésbicas, não poderiam ser mães’. E quando temos filhos, somos vistas como irresponsáveis”, conta.

Já Mariana percebe suas primeiras maternidades de outra forma. “Eu era compulsoriamente obrigada a dar conta sozinha dos meus filhos. Se você está grávida daquele filho, então você é obrigada a ser a mãe dele. Se você não quiser aquele filho, você é uma péssima mãe. É um lugar que é seu mesmo que você não queira.”

Juntas, as duas decidiram ter mais dois filhos. “Eu pude ser mãe dentro de uma sociedade heteronormativa, que nunca me tirou esse lugar. Pelo contrário, sempre me cobrou. Depois, pude ser mãe com uma outra mulher que gestou o meu óvulo. Como eu tinha vindo de uma experiência heteronormativa, inicialmente, eu achava que o fato de ser o meu óvulo, o qual ela estava gestando, me traria algum lugar de maternidade”, relata Mariana.

Aline Cristina Camacho Ambrósio, ginecologista e sexóloga do Hospital Albert Einstein, afirma que, muitas vezes, as mulheres cisgênero escolhem a fertilização, em que uma doa e outra gesta, para que ambas se sintam participantes da gestação.

Nesses casos, Ambrósio explica que a carga genética do bebê virá somente do óvulo da mãe doadora. Mas, quando a criança é gerada no útero da outra mãe, “ela já vai recebendo informações dessa mãe, tanto da parte biológica, de alimentação, hormônio, quanto do clima afetivo que essa mãe gera gestando o bebê. Isso é uma das coisas que estimula as mulheres a fazerem dessa forma compartilhada. O clima afetivo é extremamente importante para a gestação dessa criança”.

Porém, o casal entendeu que a maternidade não está relacionada só com a genética. “Eu não me sentia mãe dele quando ele nasceu. O fato de ele ter minha genética não me garantiu um lugar materno com ele. Eu tive que conquistar isso”, diz Mariana.

“Eu não me sentia mãe dele porque ele tinha o meu óvulo, eu me sentia mãe dele porque eu desejei ser mãe dele, porque eu fui em busca disso, porque no cotidiano a gente investiu nessa troca, nesse cuidado, nesse vínculo. Se não tem desejo, não existe maternidade.”

Além do vínculo mãe e filho, Mariana também comenta sobre a relação desenvolvida com a esposa dentro da dupla maternidade. “Você precisa olhar para o outro e pensar ‘agora vou parar para que o outro possa existir’. Isso é necessário porque a gente está compartilhando esse lugar do cuidado.”
A ginecologista também expõe que é possível, no caso de duas mulheres cis, que as duas mães amamentem o bebê. Na mãe que não gestou, é possível induzir, com medicamentos, a produção de prolactina, hormônio produtor do leite.

“Só o ato de sucção também já pode estimular a prolactina. Conforme o bebê vai sugando, você entra num ciclo repetitivo de produção desse hormônio que faz com que o corpo produza leite”, ressalta a médica.

Ambrósio explica que, no caso de mulheres trans, a gestação também é possível através da fertilização e da inseminação. O sêmen de uma das mulheres trans fecundará o óvulo doador e o embrião será gestado por uma barriga solidária. “As duas mulheres trans estarão mais próximas dessa mulher cis que vai estar gestando, que vai estar entrando com o útero. É importante para o clima afetivo elas participarem”, afirma.

Porém, a ginecologista destaca que, para mulheres que utilizam hormônios feminilizantes, o ideal é que o sêmen seja congelado antes do início da terapia. Caso ele não tenha sido reservado, será preciso interromper uso do hormônio durante o processo de fertilização ou inseminação.

LICENÇA MATERNIDADE
A reprodução assistida para todas as mulheres LGBTQIAPN+ é garantida pela resolução nº 2294/2021 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Porém, alguns direitos, como a licença maternidade para a mãe não gestante, ainda precisam ser judicializados. Durante a licença maternidade de Lizandra, Mariana continuou trabalhando já que não recebeu sua licença.
“Eu tenho um processo na Justiça ainda sobre a minha licença maternidade, e ele não tem resposta. Isso me trouxe a um lugar de muita dor, porque eu queria ter podido investir na minha relação com ela desde o começo, e eu tive que voltar a trabalhar. Eu adoeci muito, fiquei bastante deprimida. A nossa Justiça não olha para essas famílias ainda como um lugar igualitário”, afirma Mariana.