Violações contra guarani-kaiowá afetam saúde mental e elevam suicídio entre indígenas

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Na cosmologia guarani-kaiowá, cada pessoa é acompanhada por um pássaro ao longo da vida, o gwyra, responsável por seu equilíbrio. Mas acontecimentos traumáticos podem afastá-lo e levar a pessoa ao entristecimento. Cabe às rezadeiras trazer o guia de volta -um trabalho importante para a saúde mental de seu povo.

O que acontece, porém, quando não há mais rezadeiras? No final de setembro, a líder religiosa Sebastiana Galton, 92, foi morta com o marido, Rufino Velasque, 55, dentro da própria casa. Os corpos dos dois foram encontrados carbonizados na aldeia Guassuty, em Aral Moreira, Mato Grosso do Sul, na região fronteiriça com o Paraguai.

O caso foi o estopim para que o Ministério dos Povos Indígenas criasse um gabinete de crise para acompanhar a situação dos guarani-kaiowá. O povo é alvo frequente de ataques e confrontos motivados pela disputa territorial com fazendeiros e agentes da especulação imobiliária. Vivem ainda em situações precárias, com falta d’água e de recursos básicos, além de superlotação em seus assentamentos.

“O nosso povo é muito espiritualista”, conta Janio Kaiowá, liderança jovem da Aty Guasu, entidade kaiowá. “Temos relação com a natureza, com a terra e os rios. Mas as violações, o desmatamento e a perseguição fragilizam esses laços.”

“Os únicos que conseguem trazer de volta o nosso viver bem são os nossos rezadores. São eles que têm o conhecimento de invocar nosso gwyra de volta. Mas estamos perdendo os anciãos por causa das perseguições. Nossa comunidade está doente”, completa.

Os guarani-kaiowá são uma das etnias mais vulneráveis ao suicídio. O estudo mais recente sobre o tema, feito pela Fiocruz e publicado na revista Lancet, mostra que Mato Grosso do Sul é o estado com a maior ocorrência desse tipo de morte.

Ele e o Amazonas alavancam as taxas de suicídio entre indígenas no país. Os números são 2,5 vezes maiores do que entre não indígenas. Os principais motivos para isso, conforme estudos passados já indicavam, são a pobreza, fatores históricos e culturais, baixos indicadores de bem-estar, desintegração das famílias, vulnerabilidade social e falta de sentido da vida e do futuro.

O não reconhecimento de suas terras e o abuso de substâncias como álcool e drogas também se juntam a esses fatores.

“Para que vou viver se meu povo vai continuar morrendo? Esse é o pensamento que muitos jovens têm. O álcool e a droga acabam sendo uma forma de fuga para a juventude”, diz Janio.

Segundo o líder indígena, ao menos 30 casos de suicídio entre guarani-kaiowá foram registrados em 2023.

LUTA POR ESPAÇO

A pesquisadora Aline Crespe, da Universidade Federal da Grande Dourados (MS), aponta que o suicídio entre os guarani-kaiowá está relacionado à precarização da vida. Um dos motivos é a superlotação nos espaços ocupados por eles.

Em Mato Grosso do Sul, há 32 terras indígenas de kaiowá e ñhandeva, outra etnia da família guarani. Porém, apenas 29% estão sob posse efetiva das comunidades, conforme aponta um estudo do ISA (Instituto Socioambiental). Com uma densidade demográfica alta, isso significa uma média 1,1 hectare por pessoa.

“A saúde está associada à necessidade de produzir um corpo guarani-kaiowá. E ele é produzido a partir de determinados alimentos, práticas, rezas, remédios e ritos. Cada vez mais isso fica inviável na reserva, porque não tem espaço, não tem água nem o básico necessário”, diz Crespe.

Na tentativa de conquistar mais espaço, é comum os guarani-kaiowá fazerem retomadas, isto é, ocupam pequenas áreas identificadas por eles como parte de seu território tradicional ou que foram subtraídas do perímetro inicial da reserva indígena. É nesses assentamentos que os conflitos se intensificam.

Entre 2000 e 2019, 39,4% dos assassinatos de indígenas no Brasil aconteceram em Mato Grosso do Sul, segundo o estudo do ISA. O estado também concentrou a maioria dos casos de suicídio: 63,7%.

Os mais afetados são os jovens. A pesquisa da Fiocruz aponta que a juventude guarani-kaiowá tem menos acesso à educação e uma renda mais baixa do que outros grupos indígenas no estado. Alvos de preconceito, eles costumam ocupar subempregos, de remuneração baixa e más condições de trabalho.

Outro cenário frequente é o aliciamento dos jovens indígenas por grupos criminosos, como traficantes e de extrativismo ilegal, que prometem melhorias na vida da pessoa em troca de mão de obra.

“O contato com o mundo do crime dá expectativas entre os jovens que jamais serão alcançadas e isso gera uma frustração, que pode levar a um transtorno mental e, por consequência, ao suicídio”, diz Jesem Orellana, um dos pesquisadores do estudo da Fiocruz, apontando ainda a facilidade de acesso a drogas.

SEGURANÇA PÚBLICA E SAÚDE MENTAL

No assassinato da rezadeira Sebastiana Galton, seu sobrinho foi preso suspeito de ter cometido o crime. Ele estava drogado e, segundo os moradores da região, também traficava entorpecentes. A Polícia Civil descartou que a morte tenha sido motivada por intolerância religiosa. Mas o Ministério dos Povos Indígenas pediu que a Polícia Federal investigue o caso.

O coordenador do gabinete de crise será o diretor de Mediação de Conflitos da pasta, Marcos Kaingang. Ele afirma que as constantes violações contra o povo guarani-kaiowá tem relação direta com os índices de violência e suicídio.

Em setembro do ano passado, o adolescente Cleiton Isnard Daniel, 15, se matou no mesmo dia em que o corpo de Ariane Oliveira Canteiro, 13, foi encontrado. Ambos eram da mesma aldeia guarani-kaiowá e foram sepultados no mesmo dia. A menina foi assassinada e passou oito dias desaparecida.

O objetivo do gabinete é melhorar a segurança da região através da articulação com autoridades federais, estaduais, municipais e indígenas.

“Entendemos que a responsabilidade também é da União. A gente vai tentar agilizar as demarcações e ver quais os trabalhos que estão pendentes para dar uma resposta que estamos comprometidos com o direito constitucional.”

JUVENTUDE REAGE

“A gente perservera em meio ao caos”, diz o rapper Kelvin Mbarete. Ele faz parte, junto com Bruno VN, Tio Creb e CH, do Brô MC’s, o primeiro grupo de rap indígena no Brasil.

Com 14 anos de trajetória, o conjunto de jovens kaiowá canta em português e em guarani sobre a vivência na reserva indígena de Dourados.

“É através da rima e da arte que a gente transforma a nossa realidade em poesia e protesto”, afirma Mbarete, que cantou no Rock In Rio do ano passado. “Vemos muita coisa acontecendo com o nosso povo, mas os jovens continuam lutando. Esse é o nosso futuro. Assim como acontece há 500 anos, será de muita luta, mas também muita conquista”.

Para o grupo, preservar a cultura guarani-kaiowá é o caminho de garantir a sobrevivência de seu povo. E a música é o canal que acharam para dizer aos jovens da sua etnia que, apesar das violações, a luta vale a pena.

“Se ninguém falasse por nós, não existiriam hoje os grandes líderes indígenas. Nós mostramos, principalmente para o não indígena, que somos capazes”, afirma Bruno VN.

PROCURE AJUDA

Se você ou alguém próximo de você está pensando em suicídio, procure os serviços abaixo:

NPV (Núcleo de Prevenção à Violência)

Os NPVs são constituídos por ao menos quatro profissionais dentro das UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e de outros equipamentos da rede municipal. Para acolher e resguardar as vítimas, os núcleos atuam em parceria com o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Conselho Tutelar, a Secretaria Municipal de Educação e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.

Mapa da Saúde Mental

O site, do Instituto Vita Alere, mapeia serviços públicos de saúde mental disponíveis em todo território nacional, além de serviços de acolhimento e atendimento gratuitos, além de ações voluntárias realizadas por ONGs e instituições filantrópicas, entre outros. Também oferece cartilhas com orientações em saúde mental.

CVV (Centro de Valorização da Vida)

Voluntários atendem ligações gratuitas 24 horas por dia no número de telefone 188, por chat, por email ou diretamente em um posto de atendimento físico.