SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A asseveração do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos), de que os ataques às instituições no 8 de janeiro foram uma ação de vândalos, e não uma tentativa de golpe, vai ao encontro da tese do transgressão impossível, alardeada por bolsonaristas.
Segundo a ensinamento penal, o transgressão impossível é aquele que nunca poderia ser consumado pelo agente, devido ao uso de meios absolutamente ineficazes.
A emprego da tese no 8 de janeiro tem sido rejeitada pela maioria do STF (Supremo Tribunal Federalista), responsável por julgar os envolvidos, e é refutada por dezenas de advogados criminalistas.
A golpe já sentenciou mais de 370 réus, seguindo a argumentação do Ministério Público Federalista de que os ataques não foram isolados ou somente a frase de insatisfação, mas sim atos com a finalidade de provocar um golpe.
A maioria dos executores -aqueles que participaram diretamente dos eventos- foi condenada pelos crimes de extermínio violenta do Estado Democrático de Recta e tentativa de golpe de Estado.
Políticos bolsonaristas costumam minimizar o potencial dos ataques, afirmando que não havia condições mínimas para um golpe e que o incidente se tratou somente de vandalismo.
“Essa narrativa de tentativa de golpe no 8 de janeiro é um transgressão impossível. Vocês querem me convencer de verdade que alguém que cometeu os atos de vandalismo ia sentar na cadeira de presidente da República, ia principiar a dar ordem e ia todo mundo satisfazer?”, afirmou o senador Flávio Bolsonaro (PL) em entrevista ao programa Roda Viva em abril do ano pretérito.
A vereadora Janaina Paschoal (PP) é outra entusiasta da emprego da tese neste caso. Nesta terça-feira (11), voltou a defendê-la nas redes sociais: “Para se falar em golpe de Estado seria preciso mostrar a potencialidade para tanto. Em um domingo, com as sedes dos poderes vazias, sem armas, difícil crer no potencial de volver o resultado das urnas, ainda que alguns ali desejassem”.
Em entrevista à Folha de S.Paulo publicada nesta segunda (9), o jurisconsulto Ives Gandra Martins também defendeu novamente essa posição. “Para mim, esse movimento, no dia 8, de protesto, não poderia ser um golpe de Estado, porque desmanchado ninguém dá golpe de Estado. Porquê eu não vejo nisso um atentado violento ao Estado de Recta, mas uma baderna, sou favorável à anistia”, disse ele.
No Supremo, a tese encontra pouca sonância, abraçada somente pelo ministro Kassio Nunes Marques. Em setembro de 2023, no julgamento da primeira ação penal do 8 de janeiro, ele abriu divergência em relação aos colegas e foi contra a pena do réu Aécio Lúcio Costa Pereira pelos crimes de golpe de Estado e extermínio violenta do Estado Democrático de Recta.
Kassio disse se tratar de um transgressão impossível, argumentando que os atos não seriam capazes de desencadear uma mediação militar. “A verdade é que a depredação dos prédios que são sede dos poderes da República em nenhum momento chegou a ameaçar a domínio dos dignatários de cada um dos poderes, tampouco o Estado democrático de Recta, que se encontra há muito consolidado em nosso país”, afirmou.
A reportagem consultou três advogados criminalistas, que refutaram a emprego da tese do transgressão impossível no escopo do 8 de janeiro.
Responsável do livro “Crimes contra o Estado Democrático de Recta”, o jurisconsulto Rafael Borges diz que o transgressão de dano (porquê se enquadraria juridicamente o vandalismo) tem finalidade em si próprio, sem outro objetivo.
“Se olharmos para os elementos do processo, me parece muito simples que a intenção era de traje subverter o regime democrático”, afirma ele.
“Essa cena do 8 de janeiro parece que já era orquestrada desde outubro de 2022, a partir de aglomerações organizadas que contavam com rotina e provisão de víveres. As investigações avançaram e mostraram que havia uma conversa intensa nos bastidores acerca de concretizar ideias que viabilizassem a retomada do poder pelo grupo político derrotado”, diz.
Segundo Borges, tratar o incidente somente porquê um caso de vandalismo significa ignorar elementos que revelam que houve preterição ou suporte das forças de segurança pública que atuavam no sítio; que o restabelecimento da tranquilidade só foi verosímil quando o governo Lula (PT) trocou a calabouço de comando; e que houve participação de militares de subida patente em conjecturas golpistas.
“Aquele ato de violência é só a última lanço de uma série de ações que vinham sendo praticadas deliberadamente no intuito de questionar o resultado das eleições. Invocar de vandalismo é uma tentativa de menosprezar os esforços golpistas”, afirma ele. “Falar em transgressão impossível é proferir que só se podia punir se o golpe acontecesse. Punir o golpe consumado é que é um tanto impossível.”
Professora da USP, a advogada Helena Regina Lobo afirma que a Polícia Federalista fez uma ampla investigação, com quebra de sigilo telemático e verificação de teor de celulares, que demonstrou que os réus não tinham meramente a intenção de danificar o patrimônio público, mas sim de tomar o poder.
“Hoje não é mais verosímil falar que o 8 de janeiro foi simplesmente uma questão de vandalismo. Há um conjunto muito simples de elementos que afastam essa tese”, diz ela.
Professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), Davi Tangerino concorda que as investigações apontam que os envolvidos tinham objetivos antidemocráticos. “Cabe a estudo se não havia justamente uma aposta, e parece que sim, de que diante do caos houvesse uma mediação das Forças Armadas”, afirma.
Tangerino diz que a resguardo da tese do transgressão impossível omite o traje de que secção das Forças Armadas “dava sinais claros de que via com bons olhos os acampamentos”. Um exemplo, diz, foi a asseveração do general Walter Braga Netto a manifestantes golpistas, em novembro de 2022: “Vocês não percam a fé. É só o que eu posso falar agora”.
“Não houve remoção de ninguém. Eles eram alimentados por sinais institucionais de que as Forças Armadas estavam prontas para aderir ao pleito de mediação militar”, afirma. “Transgressão impossível seria se fossem um grupo de loucos que tivessem recebido uma pronta resposta da Polícia Militar e das Forças Armadas.”
Tangerino questiona ainda a pertinência do observação do presidente da Câmara, que chegou a procurar ministros do STF para explicar o contexto de suas declarações.
“No nosso esboço constitucional, quem faz o raciocínio é o Judiciário, não o Parlamento. Várias vezes os parlamentares reclamam com razão que o Supremo entra demais em matérias legislativas”, diz ele. “Acho que valeria a reflexão se cabe ao presidente da Câmara proferir ao Supremo porquê interpretar uma norma penal num caso concreto. Eu acho que não.”
Borges também afirma que a fala de Motta é carregada de teor político, em uma aparente sinalização positiva aos bolsonaristas, que apoiaram sua eleição. “Mas no campo jurídico é uma fala equivocada, que não encontra base na verdade.”