PEDRO DINIZ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Qual seria o oposto de todo o empacotamento costurado em moletom visto, vendido e usado a rodo nos meses mais solitários da pandemia? A resposta define como a temporada de verão 2022 estendida em setembro e o início deste mês desencapou os corpos nas passarelas, jogou luz às barrigas tanquinho e postergou, ou sepultou, a dita mudança fundamental que a pandemia traria.
Sabia-se que a nudez já não era um problema para o consumidor jovem superexposto, estivesse ele no recatado Instagram ou no explícito OnlyFans, mas o que as marcas de luxo promoveram quase em uníssono entre Nova York, Londres, Milão e Paris foi uma orgia de fendas, mini comprimentos e transparências pouco antes vista na história recente da costura. E faz sentido.
A privação do contato físico, as noites mal dormidas e os dias que corriam apenas em “touchscreen” estancaram o desejo pela vida texturizada e a graça de usar moda como ferramenta de sedução -não só como chamariz do toque alheio, mas como ponto de atenção do olhar externo que é caro à moda.
O hedonismo da roupa feita para a noite, colocada em primeiro plano nos desfiles pandêmicos, podem ser lidos como memórias do que foi perdido, e, agora, na reconquista da liberdade, a sorte de estar vivo coloca tudo o que é essencial à experiência humana acima de qualquer tendência. Essa lógica, importante dizer, não partiu dos relatórios de gurus, mas da própria rua.
Ainda em julho, quando os americanos começaram a sair de casa e tomar o sol nas ruas, os críticos de moda logo avisaram haver pele demais suja de sorvete. Microshorts, tops e lingerie cravejados de pedras, além de logos à mostra nas cuecas, eram sinal de que as pessoas estavam dispostas a esquecer o pijama arrastando pela casa.
Tom Ford, o pai da estética anos 2000 novamente em voga com cinturas baixas, bustos cobertos por tarja de tecido e fendas desconcertantes, encerrou a temporada nova-iorquina prevendo a nova ordem.
Os garotos exibiam os torsos descobertos com apenas um nó fechando a camisa na altura da virilha, as meninas trajavam calças cargo combinadas com blusas de malha metalizada transparente, e as bermudas, tendência pré-pandêmica, lançaram um novo esportivo estroboscópico.
Mesmo a vanguarda londrina, afeita às novas construções e a um estilo intelectualizado, aderiu à ideia. O georgiano David Koma mergulhou modelos em água em uma coleção que parece fundir os trajes de banho ao guarda-roupa de festa, no qual vestidos recebem os recortes de maiô e macacões de surfe, só que revistos com transparências e brilho.
Enquanto isso, na mesma toada sem firulas, o estilista Jonathan Anderson fez um calendário fotografado pelo popstar da fotografia de moda, Jurgen Teller, para exibir uma coleção de minivestidos com alças finas e telas de crochê –as bases manuais são grande aposta das grifes, como se o aspecto tridimensional recuperasse o sentido tátil da roupa.
Confortável no tema do despudor chique, próprio de suas grifes que traduzem o legado da beleza greco-romana, Milão exaltou as proporções dos corpos esculpidos. A Versace nem precisou criar demais para estar na última moda.
“Physical”, de Dua Lipa, embalou o desfile com direito à própria cantora fazendo as vezes de modelo. Na passarela, as minissaias presas com os alfinetes dourados característicos da marca foram combinadas a um sem fim de braços descobertos e à alfaiataria que tanto Donatella Versace adora e, mais uma vez, funde-se às estampas e às malhas metálicas criadas por seu irmão.
Até Giorgio Armani, adepto das construções matemáticas e das gramaturas de tecidos mais pesados, preferiu a leveza das transparências em looks que descobriram os colos das modelos. Assim como em outros desfiles desta temporada, os casacos ou não estão abotoados ou deixam o terço final do abdome livre para respirar o ar puro.
Mas foi a comumente sisuda Paris que coroou o tema. A começar pelos 1960 resgatados pela Christian Dior, que vai ao âmago do início da libertação do corpo feminino no século 20 para encher as passarelas de minissaias e vestidos em “A” típicos da gestão do estilista Marc Bohan na grife.
A estilista Maria Grazia Chiuri mostra em cores blocadas e tecidos luminescentes a mescla de sua alfaiataria rígida com pinceladas esportivas, em que até o uniforme dos boxeadores pode virar elemento de moda para uma clientela acostumada à feminilidade helênica do longínquo 2019.
O espírito de fuga das quatro paredes de casa levou a Hermès a colocar sua imagem vinculada à montaria em um espectro ensolarado pouco visto na mesa de corte da estilista Nadège Vanhee-Cybulski. De tesoura extremamente técnica, ela prova que mesmo o couro, a base tanto fetichista quanto suntuosa da costura, pode assumir um retrato fidedigno dos novos tempos.
Pisar na praia foi a saída de duas mulheres que representam bem o “cool” parisiense, as estilistas Virginie Viard, da Chanel, e Isabel Marant.
Adepta do guarda-roupa descomplicado, Marant expôs as pernas dos modelos com maiôs, bermudas e biquínis, cuja dupla de peças apareceram sobrepostas à roupa, no jogo de colocar a roupa íntima à frente da externa que condiz com essa cartilha de tornar público o que costumava ser privado.
Mais atenta aos brilhos e ao sentimento de fuga para a areia, a Chanel desceu como nunca o cós, combinando as peças de baixo a mini blusas coladas que levam o nome da grife e devem agradar aos clientes menos interessados no passado de tailleurs de tweed.
Foi nos estertores dessa maratona de sexo reprimido, porém, que a ideia surgiu encapsulada para o epílogo, a volta ao escritório. A Miu Miu, de Miuccia Prada, combinou os mesmos tops e sainhas, os mesmos ossos ilíacos aparentes e a alfaiataria relaxada para formar o novo uniforme de trabalho, tão híbrido como se especula que a labuta será daqui para frente.
Ao colocar em xeque os códigos de decência que ainda rondam o look corporativo e ao desafiar o conservadorismo saído das sombras nesta pandemia, Prada recorda que se o trabalho dignifica o homem, o sexo, a liberdade e o prazer glorificam-no.
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