LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Nas últimas semanas, com o agravamento da pandemia, tornou-se comum ver na TV ambulâncias enfileiradas na porta de hospitais em Portugal. Uma imagem do último sábado (30), no entanto, destoava nos telejornais.
Não era apenas a aglomeração em um boteco no Rio de Janeiro que chamava a atenção. Nem mesmo a ausência quase completa de máscaras. Ou ainda a abundância de camisas verdes para onde quer que se olhasse.
Esses detalhes ficaram todos em segundo plano quando uma pessoa invadiu a entrada ao vivo de um correspondente da RTP, canal estatal do país, para proclamar. “Acabou. A América é nossa. É do Palmeiras”, gritou mais de uma vez.
O clima festivo era destaque também na emissora local de maior audiência, a CMTV, que transmitia ao vivo a comemoração pela Libertadores na Pompeia, tradicional reduto alviverde na zona oeste de São Paulo.
Não havia como driblar o impacto do que acontecia no Brasil. Assim que acabou o jogo entre Portimonense e Boavista, naquela mesma noite, pela Liga Portuguesa, os técnicos de ambos clubes foram perguntados a respeito da vitória de 1 a 0 do Palmeiras sobre o Santos.
O responsável por romper com a monotonia do noticiário atual era somente um: Abel Ferreira, que recebeu ligação até do presidente do país, Marcelo Rebelo de Sousa.
Ao conduzir o Palmeiras à conquista de sua segunda Libertadores, o português de 42 anos viu o seu nome ressoar do outro lado do oceano como nunca antes em sua carreira. Foi preciso partir para o Brasil para que as suas virtudes e os seus defeitos fossem dissecados ao pormenor, com a cobertura ampla de todas as partidas alviverdes por seus compatriotas.
Nem quando levou o Braga, quarta força do país, à melhor pontuação de sua história, ele gerou tanto interesse.
“O espaço em Portugal é muito concentrado nos três grandes”, afirma João Aroso, que era assistente do Sporting quando Abel jogava como lateral direito, esteve ao seu lado no Braga e agora é comentarista na Sport TV.
“Ele conseguiu desbloquear um pouco isso, embora a diferença em relação ao Jorge Jesus na temporada anterior tenha sido grande. É claro que isso passa pelo estatuto maior que o Jesus carregava ao assinar com o Flamengo. Já havia sido campeão com o Benfica e passado pelo Sporting enquanto o Abel não tinha e ainda não tem o mesmo prestígio”, completa.
A exemplo do que acontece no Brasil, as comparações entre os dois treinadores acabam sendo recorrentes.
“O Jesus é mais midiático, oferece outro tipo de apelo para a imprensa, uma mensagem diferente. O Abel tem uma mensagem mais técnica, possui outra personalidade e também caráter. Ele merecia ter mais visibilidade”, diz António Carraça, que trabalha no Canal 11.
É consenso, ainda assim, que isso é uma questão de tempo.
O professor de educação física que abandonou Penafiel, sua cidade natal, para ganhar o mundo tem na Libertadores um ponto de virada em sua carreira. Ele deixa o torneio sul-americano muito maior do que quando assumiu o Palmeiras, em novembro, nas oitavas de final.
A conquista de seu primeiro título profissional é a cereja no bolo de um percurso pensado desde o seu princípio ao mínimo detalhe e que, como define uma pessoa próxima, o coloca a partir de agora numa outra prateleira.
Com contrato até o fim de 2022 no Palmeiras, Abel já recusou oferta do Al Rayyan, do Qatar, e pretende cumprir o seu vínculo de forma integral.
“Esse título naturalmente vai ter proporções gigantescas em sua caminhada e acredito que abra outras possibilidades, inclusive, no mercado europeu. Não só pelo que conseguiu, mas por todo o trabalho que tem desenvolvido, pela maneira como se exprime e como tem o grupo sempre com ele”, analisa Carlos Saleiro, que foi seu colega no Sporting e hoje atua como agente.
A despeito de seu peso mais reduzido no velho continente, a Libertadores permite a Abel, enfim, extrapolar as fronteiras de Portugal e passar a ser discutido em ligas maiores.
“São façanhas como essa que marcam e transformam a carreira de treinadores. Um treinador pode ter a competência que for e trabalhar muito bem, mas, se não conseguir atingir os objetivos propostos, logicamente não pode aspirar a um nível mais elevado”, avalia Carraça, que foi diretor em diversas equipes, entre elas o Benfica. “O Abel, com essa taça, vem ao encontro disso.”
Um dos fatores citados como possível dissuasor para abreviar a sua passagem pelo Brasil é a distância da família, potencializada com a pandemia. Logo que deixou o gramado do Maracanã, no fim de semana, o palmeirense ligou, aos prantos, para o pai, Sebastião.
Suas falas na entrevista coletiva também foram fortes: “É verdade que hoje sou melhor treinador, mas sou o pior pai, o pior filho, o pior irmão. Deixei minha família de lado. Vocês não sabem a quantidade de vezes que chorei sozinho no travesseiro”.
Como atleta, ele sempre teve a companhia da esposa, que abdicou de sua formação em direito, para acompanhá-lo por todo lado e a quem prometeu, ao se aposentar, que cederia também “para dar um pouquinho de volta”.
Nada disso, claro, será colocado na mesa com o Mundial de Clubes em seu plano imediato. Para encarar um possível desafio contra o Bayern, Abel seguirá com o mantra que viralizou recentemente e repete desde sempre: cabeça fria e coração quente.
“Ele tem um discurso forte, em que conversa bastante e usa muito essa expressão. Vi no Palmeiras, mas havia escutado antes também no Braga. E a verdade é que ele é um pouco isso, fala com a razão e age, quando o momento exige, com a emoção”, conclui Aroso.
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