SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Só o Brasil e a farmacêutica chinesa que desenvolveu a proxalutamida para tratamento de câncer estão testando essa droga contra a Covid-19. O fármaco virou assunto recorrente do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) –e já tem sido chamado de “nova cloroquina”.
As informações são da base Clinical Trials, que reúne dados detalhados sobre experimentos de medicamentos, de diagnósticos e de vacinas com pessoas em todo o mundo.
Na prática, toda pesquisa clínica séria é registrada nessa base internacional após aprovação dos comitês de ética locais. A ideia é permitir o acompanhamento de testes com humanos em todo o mundo para impedir, por exemplo, que os pesquisadores mudem o desenho de uma investigação durante o processo.
Por aqui, as pesquisas em andamento com proxalutamida são todas coordenadas por um mesmo médico, o endocrinologista Flavio Cadegiani, de uma clínica de emagrecimento de Brasília, conhecido por declarações sem base científica sobre tratamento precoce contra Covid-19.
Os registros internacionais mostram que há duas pesquisas em andamento com proxalutamida contra Covid-19 no Brasil, uma no Hospital Samel, em Manaus (AM), e outra na clínica do próprio Cadegiani, a Corpometria Institute.
Também constam, na Clinical Trials, duas pesquisas já concluídas com a droga: novamente na Corpometria Institute (finalizada em janeiro) e em vários hospitais do Amazonas (que terminou em abril).
Ambas foram feitas antes da aprovação da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), que saiu em maio –uma falha ética grave na condução desse tipo de experimento. Esse aval é obrigatório, no Brasil, para pesquisas com humanos.
Cadegiani é também um dos responsáveis pelas pesquisas com proxalutamida contra Covid-19 no Rio Grande do Sul feitas sem a aprovação da Conep (e sem registro na base internacional Clinical Trials).
A possibilidade de tratamento da Covid-19 com proxalutamida tem sido desconsiderada por países como China, Reino Unido e França, que estão entre os que mais têm pesquisado reposicionamento de drogas já existentes no mercado para a doença causada pelo coronavírus Sars-CoV-2.
Há apenas registros internacionais de testes da droga em humanos nos EUA –todos financiados pela farmacêutica chinesa Suzhou Kintor Pharmaceutical Inc, o fabricante da proxalutamida. As pesquisas, no entanto, ainda estão prospectando pacientes (ou seja, ainda não começaram).
A reportagem encontrou também 19 pesquisas clínicas com proxalutamida contra Covid-19 aprovadas pela Conep que ainda não constam na Clinical Trials. São trabalhos de pesquisadores de instituições como a Universidade de Caxias do Sul e a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Na prática, a aposta no fármaco –usado ainda de maneira experimental contra o câncer de próstata– para combater a Covid-19 é, por ora, apenas brasileira.
Questionado por email pela reportagem via sua assessoria de imprensa sobre a proposta de testar essa droga para Covid-19 de maneira isolada no Brasil, Cadegiani respondeu que “existem outros estudos com outras drogas da mesma classe terapêutica”.
“Os estudos, desde os in vitro até os clínicos, estão no sentido da confirmação da nossa hipótese. Trata-se de uma teoria –a teoria antiandrogênica– bem estabelecida.”
A base teórica antiandrogênica para o uso dessa droga na doença causada pelo coronavírus à qual o médico se refere é a observação –do próprio grupo de Cadegiani– de que homens calvos teriam maior vulnerabilidade à Covid-19. Como a calvície pode estar ligada a hormônios androgênicos (como a testosterona), os chamados antiandrogênicos, caso da proxalutamida, poderiam agir contra a Covid-19.
O tema é considerado controverso na ciência, já que a calvície está também ligada ao envelhecimento (e pessoas mais velhas têm mais risco de morrer de Covid-19).
Os resultados das pesquisas já finalizadas coordenadas por Cadegiani foram publicados em dois artigos científicos –os únicos que existem no mundo especificamente sobre proxalutamida para Covid-19. Essas informações são de outro levantamento da reportagem, feito na base internacional Web of Science, que reúne artigos científicos publicados em milhares de periódicos acadêmicos.
Os trabalhos saíram em fevereiro e em julho, respectivamente nos periódicos internacionais Cureus e Frontiers in Medicine. Levantaram as sobrancelhas da comunidade acadêmica porque derrapam em questões éticas.
“O artigo sobre proxalutamida publicado no Cureus não traz registro específico do Comitê de Ética, que é obrigatório em publicações sérias”, explica Leandro Tessler, físico da Unicamp e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais. Ele tem se debruçado sobre aspectos metodológicos de publicações relacionadas à Covid-19.
Consta, na publicação, um número de autorização para outra droga pesquisada, cujos resultados foram publicados em artigos anteriores dos autores na mesma revista científica.
“Já no trabalho da Frontiers in Medicine, as datas declaradas no estudo são anteriores à aprovação na Conep [do Brasil] e ao registro na base internacional Clinical Trials”, destaca Tessler.
Antes das pesquisas com a proxalutamida, Cadegiani já estava envolvido no estudo AndroCoV –mencionado na CPI da Covid pela secretária do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro como base do aplicativo TrateCov.
O sistema sugeria prescrição de drogas sem comprovação científica, como hidroxicloroquina e cloroquina, a partir de uma pontuação definida pelos sintomas do paciente após o diagnóstico do novo coronavírus.
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