Sequelas sociais da Covid exigem ações estruturais para além da assistência

LEONARDO VIECELI E FERNANDA BRIGATTI
RIO DE JANEIRO, RJ, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A pandemia forçou a ampliação de medidas de assistência social nas metrópoles brasileiras, e a demanda pelos serviços segue elevada em meio a um contexto de desemprego e inflação em patamares altos.

Diante desse cenário, medidas de caráter emergencial continuam sendo necessárias no país, mas precisam vir acompanhadas de políticas que provoquem ganhos de caráter estrutural em áreas como capacitação profissional e educação, dizem especialistas e representantes de organizações sociais.

Segundo eles, esse é o caminho recomendado para que o Brasil consiga combater de forma mais consistente, nos próximos anos, o quadro de dificuldades acentuadas pela crise sanitária.

“Todo tipo de política de ajuda tem sido importante na pandemia. Mas as pessoas não querem viver a vida inteira com doações de cestas básicas. Elas querem trabalhar. Querem ter emprego. Isso só vem com política econômica”, afirma Sebastião Santos, presidente da ONG Viva Rio, que realiza ações sociais no estado do Rio.

O economista Marcelo Neri, diretor do centro de estudos FGV Social, lembra que o mercado de trabalho e a área de educação estão entre os setores mais castigados pela pandemia. Avanços nesses campos, diz, serão fundamentais pensando no médio e no longo prazos.

“Durante a pandemia, o Brasil deu anestesia, interrompeu algumas dores, sobretudo com transferência de renda. Mas vamos precisar de operações complementares para a reabilitação”, afirma Neri.

Devido à crise gerada pela pandemia, prefeituras de grandes cidades como Rio e São Paulo viram crescer a demanda por serviços diversos de assistência social, exigindo das gestões públicas a ampliação de programas e a criação de novas frentes.

No Rio, a secretaria de Assistência Social diz ter adotado medidas como aumento no número de vagas em abrigos, transferência emergencial de renda (Auxílio Carioca), inclusão de famílias até então invisíveis no CadÚnico (Cadastro Único do governo federal que dá acesso a programas como os extintos auxílio emergencial e Bolsa Família, este último substituído pelo Auxílio Brasil), visitas a comunidades vulneráveis para prestação de serviços diversos e capacitação de pessoas em abrigos para o mercado de trabalho.

A pasta prevê um aumento no orçamento para assistência social em 2022. “Dos R$ 435 milhões previstos para 2021, a verba chegará a R$ 591,5 milhões para execução em 2022, tendo como principais metas até 2024, de acordo com o Plano Plurianual 2022-2025, o combate à extrema pobreza e à insegurança alimentar e a viabilização da empregabilidade da população em situação de rua que está nos abrigos”, diz a secretaria.

Segundo a prefeitura, um censo realizado em 2020 identificou 7.272 pessoas em situação de rua no Rio. A gestão municipal diz que não há como comparar o número com anos anteriores, devido à ausência de um levantamento com as mesmas características. O próximo censo está previsto para 2022.

Mesmo sem os dados para comparação, a prefeitura carioca diz que há uma perceptível mudança no perfil das pessoas que estão vivendo na rua.

Pelo censo de 2020, o grupo era formado principalmente por homens adultos e que viviam sozinhos na capital fluminense. Com a crise aprofundada pela pandemia, mais famílias passaram a procurar a rede de assistência municipal em busca de acolhimento nos últimos meses.

A alteração no público que demanda ajuda é observada também por organizações que atuam junto à população de rua. Juliana Silva, gestora de parcerias e relacionamento do Projeto Ruas, diz que o público se expandiu.

“Já havia o grupo em situação de rua que frequentava nossas ações aqui no Rio. Com a pandemia, vemos mais pessoas que até moram em casas, mas não conseguem manter a alimentação”, afirma.
Na noite de quinta-feira (16), o projeto organizou uma ação que doou marmitas e ofereceu serviços como corte de cabelo na região central da capital fluminense.

A Folha conversou com uma mulher de 71 anos que foi até o local. A idosa, que trabalhava como doméstica antes de se aposentar, vive atualmente em uma ocupação e prefere não ser identificada. Ela relata que as dificuldades ficaram maiores nos últimos tempos.

Com a carestia dos alimentos na pandemia, ela vem buscando auxílio de projetos sociais para fazer suas refeições. “Com uma aposentadoria simples, você tem de escolher entre comer, comprar remédios ou pagar aluguel”, diz.

Na visão de Juliana, além de ações emergenciais por parte do poder público no curto prazo, a melhora do quadro vai depender nos próximos anos de medidas de caráter estrutural. “A gente entende que é preciso buscar soluções definitivas. É preciso investir em áreas como moradia e educação.”

Na capital paulista, a prefeitura não sabe, hoje, quanto são os cidadãos vivendo na rua. Um censo que estava marcado para 2023 foi antecipado para 2021 devido aos impactos da pandemia. A previsão é divulgar os resultados no início de 2022.

Os dados mais recentes são de 2019, quando 24,3 mil pessoas viviam na rua. O número já indicava um aumento de 60% em relação a 2015.
Na cidade, o enfrentamento às consequências mais severas da pandemia, como o aumento da população de rua e de pessoas em vulnerabilidade –falta de segurança alimentar ou vítimas de violência doméstica, por exemplo,- estão divididas entre as subprefeituras e as secretarias de Assistência Social e de Direitos Humanos.

Muitas já existiam, como o serviço de abordagem e encaminhamento a centros de acolhida, onde há 24,8 mil vagas, e mais 54 Cras (Centros de Referência de Assistência Social), 30 Creas (Centros de Referência Especializado de Assistência Social) e seis Centro Pop (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua).

As vagas nos NCI (Núcleos de Atendimento a Idosos) foram ampliadas emergencialmente, com 1.760 colocações a mais, segundo a Assistência Social.

Outras ações, como os programas Cidade Solidária e a Rede Cozinha Cidadã, foram criadas a partir do início da crise sanitária, em março do ano passado. O primeiro programa distribuiu 5,2 milhões de cestas básicas e 1,3 milhão de kits de higiene e limpeza a famílias em extrema vulnerabilidade.

Em outra frente, o Cozinha Cidadã comprava refeições de pequenos estabelecimentos e distribuía as marmitas à população de rua. Ao todo, 4,2 milhões de refeições e 222 mil litros de água foram entregues. Um outro braço do programa distribuiu 2,7 milhões de marmitas em comunidades. Segundo a secretaria de Direitos Humanos, o programa segue distribuindo as refeições, mas está passando por reformulação.
Por ora, a discussão sobre políticas de assistência social em nível nacional no Brasil está voltada para o Auxílio Brasil. Lançado pelo governo Jair Bolsonaro (PL), o programa substitui o Bolsa Família, mas tem pontos contestados por especialistas e ainda desperta incertezas sobre a capacidade de financiamento.

“Fala-se em um auxílio de R$ 400 que não leva em conta o tamanho das famílias. As famílias maiores e mais pobres têm uma necessidade maior de ajuda do que as menores. O manual não está sendo seguido”, afirma o economista Marcelo Neri, diretor do centro de estudos FGV Social.
O economista Ely José de Mattos, professor da Escola de Negócios da PUCRS, também questiona pontos do Auxílio Brasil.

“Há uma pressão social por transferência de renda, mas o novo programa ainda está muito incerto. Seria melhor se tivéssemos usado a energia para ampliar e melhorar o Bolsa Família. Estamos desperdiçando algo que é muito valioso, a expertise de um programa social”, diz.

Para Mattos, a área social reúne uma série de desafios para o Brasil nos próximos anos, e é necessário pensar em transferência de renda acompanhada por iniciativas de inclusão no mercado de trabalho e educação.

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