WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – O repórter iraquiano Muntadhar al-Zaidi decidiu calçar sapatos velhos para ver George W. Bush.
O presidente americano estava em Bagdá, no final de 2008, para falar com a imprensa. Os Estados Unidos tinham invadido o Iraque anos antes para travar ali, diziam, sua guerra ao terror.
Quando por fim viu Bush na entrevista coletiva, Zaidi tirou os sapatos. Arremessou o primeiro dizendo “este é um beijo de despedida do povo iraquiano, seu cachorro”. Quando jogou o segundo, disse “este é pelas viúvas e órfãos e todos os mortos no Iraque”. Bush desviou dos dois.
A sapatada de Zaidi é ainda hoje um dos momentos mais icônicos da era pós-11 de Setembro no Iraque -símbolo de uma invasão desastrosa e um crescente sentimento anti-americano na região.
Os Estados Unidos invadiram o Iraque em 2003, dois anos depois de irem ao Afeganistão. O ataque foi justificado por dois pretextos, mais tarde desafiados: que o ditador Saddam Hussein estocava armas de destruição em massa e que tinha laços com a organização terrorista Al Qaeda. Àquela época, Osama Bin Laden -responsável pelo ataque às Torres Gêmeas- ainda estava foragido.
Zaidi era um estudante de engenharia mecânica. Ao ver os tanques americanos rolarem pelas ruas de Bagdá, decidiu mudar de profissão. Virou repórter. “Queria fazer alguma coisa contra a ocupação”, diz ele à reportagem. Hoje, tem 42 anos. “Eu vi as vítimas, os bombardeios, a destruição dos hospitais, a tortura na prisão de Abu Ghraib. Tudo cometido sob a mentira da guerra ao terror.”
A invasão americana derrubou o ditador Hussein, mas devastou também o país. As estimativas de vítimas são bastante controversas, variando de 150 mil a 1 milhão, mas é indiscutível que a guerra iniciada em 2003 abriu os portões de uma era de instabilidade política e violência. Foi o terreno fértil encontrado pela organização terrorista Estado Islâmico, que mais tarde se instalou ali.
Em 2005, Zaidi gravou um vídeo com uma ameaça. “Sou um pequeno jornalista”, dizia na fita. Explicava que não tinha nada contra o povo americano -e sim contra o governo que invadia o seu país. “Eu, o menor dos cidadãos do Iraque, quero desumanizar a arrogância desta ocupação.”
Foi só anos depois, porém, que ele teve a oportunidade. Quando soube da entrevista coletiva de 2008, Zaidi diz que foi para casa e olhou para todos os seus sapatos. Escolheu um que tinha calçado em suas entrevistas com vítimas iraquianas, caminhando pelas ruas de Bagdá. “Fui até a entrevista com meus sapatos velhos. Nós nos encontramos. Eu e Bush. E cumpri minha promessa.”
Zaidi afirma que queria mostrar para o mundo que os iraquianos receberiam os americanos com os pés. “Na nossa cultura, mostrar a sola do calçado é um modo bem ruim de tratar os outros.”
Depois que o presidente americano desviou dos “projéteis”, Zaidi foi contido por agentes de segurança. Os sapatos desapareceram de vista. “Acho que levaram para ver se tinha uma bomba dentro”, diz o jornalista.
Zaidi conta ter passado três meses em prisão solitária. Afirma, também, que as forças de segurança do premiê iraquiano, à época Nuri al-Maliki, quebraram seus dedos do pé e seu nariz. Ele foi condenado a três anos de prisão. Saiu, no entanto, depois de nove meses e virou um herói local. Apareceram estátuas de seus sapatos no país, representando o repúdio aos invasores americanos.
Pese a violência de seu gesto, e a gravidade de atacar um chefe de Estado, o jornalista até hoje recebe mensagens de apoio nas redes sociais. Recentemente, por exemplo, um usuário escreveu: “Eu era uma criança quando você arremessou aquele sapato, e eu sentia muita dor e confusão com o que estava acontecendo no Iraque. Você me deu uma força e catarse que sinto até hoje.”
“As pessoas olham para mim como um herói”, diz Zaidi. “Mas eu me vejo como um guerreiro lutando contra o abuso, a corrupção e a injustiça, tanto no Iraque quanto no restante do mundo.” O jornalista concorreu ao Parlamento em 2018, mas foi derrotado nas urnas. Ele agora trabalha na TV.
Às vésperas do aniversário de 20 anos dos atentados de 11 de Setembro, Zaidi descreve aquele dia como uma lembrança terrível. Fala com pesar das pessoas que viu cair das Torres Gêmeas. Os afegãos e os iraquianos, diz, foram vítimas também do ataque. Viraram peças no tabuleiro de potências globais que, na sua avaliação, confabulavam para extrair petróleo.
Nas últimas semanas, Zaidi assistiu à retirada americana do Afeganistão -o suposto fim da era de duas décadas que engoliu seu Iraque natal. “O Talibã era um regime ruim, mas a ocupação é ruim também”, diz. “A Casa Branca fracassou em criar um bom regime no Afeganistão. Permitiu que pessoas corruptas controlassem o país. O que aconteceu com os seus bilhões e bilhões de dólares?”
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