SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em meio à maior ofensiva do Taleban em vários anos, o presidente afegão, Ashraf Ghani, culpou pela primeira vez os aliados Estados Unidos pela crise de segurança que ameaça seu governo.
“A razão para a nossa atual situação foi a decisão repentina tomada”, disse Ghani durante uma sessão do Parlamento, em Cabul.
A decisão, no caso, foi a retirada das tropas americanas do país, tomada em abril pelo presidente Joe Biden. Aliados dos EUA fizeram o mesmo, e o grupo fundamentalista islâmico que foi expulso do poder em 2001 pela invasão ocidental retomou fôlego.
Biden quer ver todas as tropas, salvo as que protegem a embaixada em Cabul, fora do Afeganistão no próximo dia 31. O grosso delas já saiu, inclusive com o fim das operações da estratégica base aérea em Bagram, perto da capital.
Desde o anúncio, os talebans avançaram e conquistaram grandes áreas do país. A Rússia estima que cerca de metade da população afegã já está sob controle dos antigos governantes.
Neste fim de semana, contudo, foi iniciada uma megaofensiva coordenada contra centros urbanos que antes estava apenas cercados, sugerindo um movimento de pinça para estrangular o coração do poder, Cabul e as áreas que ligam a cidade à fronteira com o Paquistão.
Os combates nesta segunda (2) foram mais intensos em Lashkar Gah, capital da simbólica província de Helmand, palco de alguns dos enfrentamentos mais sangrentos que americanos e britânicos tiveram com o Taleban nos 20 anos da mais longa guerra já liderada por Washington.
Helmand também é o centro produtor de papoulas do país, matéria-prima para a produção de ópio e heroína que sustenta as finanças dos fundamentalistas –uma ironia, dado que quando governaram de 1996 a 2001, o plantio foi erradicado sob alegações religiosas.
Segundo um porta-voz do Ministério da Defesa afegão disse a jornalistas em Cabul, a situação é “de emergência nacional”. Para Ajmal Omar Shinwari, contudo, o Taleban já tomou cidades antes, mas teve dificuldade para mantê-las.
Ghani também apontou para fracassos talebans no passado, e disse ter um plano de segurança para estabilizar o país em seis meses, o qual não detalhou.
O grupo cerca também Kandahar, cidade que foi sua base espiritual por anos, e Herat, importante centro próximo da fronteira com o Irã. Além disso, os talebans controlam pontos de fronteira em todo o país.
Num deles, Spin Boldak, junto ao Paquistão, a tomada da cidade foi seguida daquilo que a Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão chamou de massacre. Pelo menos 40 pessoas acusadas de colaborar com os ocidentais teriam sido mortas, muitas decapitadas.
O incidente foi denunciado nesta segunda pelas embaixadas dos EUA e do Reino Unido em Cabul, que o classificaram como crimes de guerra.
Ghani, no seu discurso, também abordou a ferocidade dos combatentes. “O Taleban não é mais o Taleban de 24 anos atrás [quando tomaram o poder]. Eles nos atacam mais violentamente e são mais sanguinários. Eles reforçaram os laços com terroristas domésticos e internacionais”, afirmou.
É também uma forma de desqualificar os talebans, que ao vencer a guerra civil em 1996 trouxeram uma relativa estabilidade interna –antes de ser um grupo terrorista, eles eram vistos também como representantes legítimos da maior etnia do país, os pashtuns (40% dos 38 milhões de afegãos).
No poder, contudo, eles criaram uma aberração em forma de governo, que suprimiu os direitos de mulheres e minorias, a aplicou de forma brutal uma leitura purista do Islã.
Tiveram a complacência ocidental pelo fim da guerra civil e o apoio ativo do país que havia fomentado o grupo, o Paquistão, de olho em um aliado a mais contra a rival Índia.
A citação da infiltração estrangeira reflete uma preocupação de Moscou e de Islamabad, cujos governos apontaram o chegada de militantes do Estado Islâmico da Síria e do Iraque ao Afeganistão.
Há histórico de ação externa no país. Durante a ocupação soviética (1979-89), os “mujahedin” (guerreiros santos) vinham de diversas áreas do mundo muçulmano para lugar contra os comunistas.
Eram, por razões geopolíticas, apoiados pelos EUA. Um dos mais famosos atendia pelo nome de Osama bin Laden, saudita que voltaria ao país em meados dos anos 1990 para lançar de lá ataques de sua rede Al Qaeda.
O resto é história: em 2001, ele promoveu os ataques de 11 de setembro contra os EUA, o Taleban foi punido com uma invasão por ter abrigado Bin Laden, que fugiu e acabou morto por comandos americanos numa casa ao lado da maior academia militar paquistanesa, dez anos depois.
A “guerra ao terror” promovida pelos EUA moldou o começo dos século 21, com a ainda mais desastrada invasão do Iraque, que não tinha uma razão justa como a operação inicial no Afeganistão clamava.
Segundo estudo da Universidade Brown, nos EUA, em todos os conflitos decorrentes do 11/9 morreram 800 mil pessoas, ao custo de US$ 6,4 trilhões para os cofres americanos. A falta de sentido do prolongamento da guerra foi o que motivou Biden.
O Estado Islâmico, a hoje residual Al Qaeda e outros grupos sempre agiram no Afeganistão nos anos da guerra. O Paquistão, visto como simpático à sua antiga cria, já sugeriu que o Taleban ou o governo afegão serão responsáveis se o país se tornar novamente uma base de terroristas internacionais.
O problema para o americano agora é óbvio.
Biden acatou uma negociação de paz pactuada com o Taleban por seu antecessor, Donald Trump, que previa negociações de divisão de poder entre talebans e o atual governo e diversos compromissos de moderação por parte dos fundamentalistas –corte de laços com terroristas, respeito às mulheres etc.
Na prática, contudo, o que se vê até aqui é a repetição do padrão de conflito tribal que marca a história do país, com a absorção de lealdades locais ao mais forte.
Como os EUA não cumpriram o prazo inicial de retirada, maio, o Taleban ainda achou uma desculpa para dizer que iria resolver a questão do seu jeito: ou seja, ampliando a pressão militar sobre Cabul.
No próximo dia 11, haverá um encontro de emergência de países com interesses na crise em Doha, cidade que sediou as negociações de paz. Estarão presentes representantes dos EUA, China, Rússia e Paquistão.
Até aqui, não se sabe se o Taleban e o governo afegão irão ser convidados, o que limita o escopo efetivo de qualquer decisão, até porque cada potência tem sua agenda.
Os chineses, que receberam uma delegação taleban na semana passada, avalizam a volta do Taleban ao poder, visando estabilidade em suas áreas muçulmanas e absorver economicamente o país, como fizeram com o Paquistão.
Já os russos, por sua vez, estão em manobras militares com os vizinhos afegãos Uzbequistão e Tadjiquistão para tentar asseverar a estabilidade em seu flanco na Ásia Central. Iranianos e turcos, com presença econômica e laços culturais no Afeganistão, também monitoram o progresso da situação de perto.
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