RAFAEL BALAGO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1934, os comunistas estavam perdendo a guerra civil na China e decidiram recuar. Essa fuga se tornaria depois um símbolo da visão estratégica do partido. E se a Longa Marcha, feita a pé, virou símbolo da luta no passado, hoje o país expande as linhas de trem-bala para exaltar que o futuro chegou.
Em meados dos anos 1930, as tropas governistas haviam cercado os rebeldes na região da fronteira entre as províncias de Jiangxi e Fujian. Encurralados, os comunistas decidiram fugir. A retirada foi dura: 80 mil pessoas partiram, mas só 8.000 chegaram ao final. A maioria morreu em combates, por fome ou doenças.
A marcha saiu do sul do país, deslocou-se para oeste e depois rumou para o norte, até Xiaxim. Foram cerca de 9.000 km percorridos em um ano. No caminho, Mao Tse-Tung, que seria o primeiro governante comunista da China, consolidou-se como líder e forjou a imagem de Grande Timoneiro, e o PC Chinês buscou divulgar suas ideias junto aos camponeses, mudando a estratégia de focar trabalhadores urbanos.
“A Longa Marcha se apoiou na velha tradição chinesa de migrações em massa, muitas vezes geradas pela falta de alimentos”, explica Osvaldo Coggiola, professor de história na USP e pesquisador do marxismo. “A marcha foi importante por preservar o Partido Comunista como força política e militar no interior.”
Após a travessia, os combatentes de Mao se juntaram a outros grupos rebeldes e prepararam uma nova ofensiva. Havia, no entanto, outro inimigo. O Japão invadiu a China, e comunistas e nacionalistas se uniram para enfrentar o país vizinho, a partir de 1937.
A Guerra Sino-Japonesa iria até 1945 e seria afetada pelos desdobramentos da Segunda Guerra. EUA e União Soviética ajudaram os chineses, pois o Japão era um inimigo em comum. Com poderes para alistar soldados, os comunistas se tornaram um dos regimentos do Exército nacional e chegariam ao final do conflito com mais de 2 milhões de homens armados e partes do território chinês sob seu comando.
Após a rendição do Japão, comunistas e nacionalistas retomaram a guerra civil, e o Partido Comunista venceu o conflito, tomando o poder em 1949. A experiência da Longa Marcha talvez ainda esteja na memória dos dirigentes da legenda, que, nas últimas décadas, investiram pesado na expansão de estradas e ferrovias para facilitar o trânsito pelo país. Neste ano, foi lançado o ciclo nacional de viagens 1-2-3, que estabeleceu três metas até 2035: até uma hora de deslocamento em áreas urbanas, duas para viagens entre municípios interligados e três para ir de uma grande metrópole a outra.
Assim, cresceram ao mesmo tempo as redes de metrô, os serviços de média distância e de trens-bala. Há números impressionantes nos três. O metrô de Xangai, por exemplo, começou a ser construído nos anos 1990 e se tornou o maior do mundo, com 743 km. Só no primeiro semestre de 2020, a China entregou 181 km de novas redes de metrô e trens urbanos no país, segundo dados estatais. Como comparação, o metrô de São Paulo foi inaugurado em 1974 e levou 45 anos para atingir 101 km de rede.
Na virada do século, a China não tinha trens-bala. Em 20 anos, foram feitos 37.500 km de linhas no país, hoje recordista global dos trens que trafegam acima de 200 km/h. A proposta agora é atingir 70 mil km até 2035. Assim, todas as cidades com mais de 500 mil moradores terão conexão com o sistema.
Na última década, os chineses também praticamente dobraram a rede de rodovias, que chega a cerca de 150 mil km. A meta, também para 2035, é chegar a 460 mil km e mais 5 milhões de km de estradas rurais.
O avanço rápido é explicado por diversos fatores. O estado chinês investe pesado em transportes, e há pouco espaço para contestar desapropriações e licenças ambientais.
A expansão logística atende a vários objetivos, como projetar uma imagem de modernidade, ganhar dinheiro no exterior, ampliar a influência sobre outros países e encurtar distâncias em um país extenso, onde vivem 1,4 bilhão de habitantes. A linha Pequim-Harbin, por exemplo, vence 1.700 km em cinco horas, em trens que chegam a 350 km/h. A distância equivale a ir do Rio de Janeiro a Salvador.
Junto com o aumento vertiginoso da malha ferroviária, houve esforço para criar uma indústria ferroviária nacional forte que hoje exporta para todos os continentes. Trens chineses foram fornecidos para o metrô de Chicago, para as linhas de alta velocidade na Áustria, para o metrô de Lahore, no Paquistão, e para a CPTM e a Supervia, que operam trens rumo às periferias de São Paulo e do Rio de Janeiro.
A China concentrou a produção de trens na estatal CRRC, que busca negócios no exterior com a ajuda do governo. Já a venda de trens faz parte da iniciativa Cinturão e Rota, projeto mais ambicioso do líder Xi Jinping para ampliar a influência chinesa no exterior. Na prática, Pequim oferece financiamentos para que outros países contratem obras e tecnologias de transporte de empresas da nação asiática.
O avanço oriental gerou competição no mercado ferroviário, antes dominado por poucas montadoras, e ajudou a baixar os preços. “Alguns anos atrás, um carro de passageiros de um trem não saia por menos de US$ 2 milhões. Hoje, é possível encontrar por US$ 1,5 milhão ou menos”, diz Joubert Flores, presidente do conselho da ANPTrilhos, que reúne empresas que operam trens de passageiros no Brasil.
Os trens podem ser montados de acordo com o desejo do cliente, que pode optar por peças de maior ou menor qualidade. “Os principais fabricantes de motores, freios, entre outras partes, atuam na China, então cabe ao comprador escolher as peças. Eventuais casos de produtos com baixa qualidade são culpa de um comprador que não soube definir os requisitos”, avalia Flores.
A expansão nas exportações chinesas gera queixas de concorrentes. “Em condições normais, a indústria brasileira de trens é competitiva, mas é difícil disputar com um trem chinês trazido inteiro, que ganha incentivo lá ao ser exportado e aqui tem isenção de impostos que as fábricas brasileiras não têm”, afirma Vicente Abate, presidente da Abifer (Associação Brasileira da Indústria Ferroviária). Ele aponta que as linhas de montagem brasileiras de vagões de carga estão 80% ociosas, e as de passageiros, quase 100%.
Já na China, o avanço segue acelerado. O país promete avançar em novas tecnologias nos próximos anos, passando a usar trens de carga de alta velocidade e transportando passageiros a mais de 400 km/h. Composições que operam sem maquinista já estão em uso, e pode-se viajar a 350 km/h sem ser conduzido por nenhum timoneiro.
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