WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – A lua crescente, marcando o céu da noite como a ponta de uma unha, anuncia a chegada do ramadã. É o mês mais sagrado para os muçulmanos, um período em que a aglomeração é uma tradição religiosa. E é mais um ritual que a pandemia da Covid-19 transformou.
Os governos de países de maioria muçulmana, como a Arábia Saudita e o Egito, anunciaram uma série de medidas para evitar as reuniões típicas deste período -na prática, fechando mesquitas e criando um debate público semelhante ao que acontece no Brasil, onde existe quem queira abrir igrejas. Há um outro desafio naquela região: a ideia, entre alguns religiosos, de que a vacina fere sua fé.
O ramadã marca o período do ano em que, segundo a tradição islâmica, o profeta Maomé recebeu suas revelações divinas, no século 7. Para celebrar a chegada de suas leis religiosas, muçulmanos jejuam do nascer ao pôr-do-sol. Esse é um dos pilares do islã, às vezes seguido mesmo por quem não pratica a fé no dia a dia. É também um dos pilares de sua vida social.
Como o islã segue um calendário lunar, a data varia todo ano. Depende de a lua crescente ser avistada. Neste ano, a maior parte dos muçulmanos deve começar a jejuar na manhã de terça (13). Em geral, os momentos antes e depois do jejum são de intensa interação social. A última refeição antes do nascer do sol, conhecida como sahur, e a quebra do jejum, o iftar, são celebrações que por vezes atraem centenas de pessoas.
Muçulmanos se reúnem em torno da mesa para tomar o qamar al-din, uma bebida dulcíssima feita de pasta de damasco e açúcar. Isso acontece em casa ou em tendas armadas na rua, onde organizações de caridade distribuem comida à população carente. Depois, vão à mesquita para as chamadas tarawih, as rezas noturnas típicas do ramadã.
Há uma série de outras tradições sociais, a depender do país. Por exemplo, pessoas conhecidas como musaharati caminham pelos bairros tocando tambor para acordar o povo antes do nascer do sol. Há também o itikaf, nome dado ao costume religioso de morar dentro da mesquita.
É o que acontece em um ano corriqueiro.
Arriscando o atrito com sua população mais conservadora, a maior parte dos países agora impõe medidas restritivas. A Turquia, por exemplo, terá toques de recolher das 21h às 5h, além de proibir o sahur, o iftar e as tarawih. O Egito proibiu as tendas de comida, o que afeta em especial a população que depende da caridade alheia para poder quebrar o seu jejum.
Uma das apostas ao redor do mundo de maioria muçulmana é oferecer rezas online, acompanhadas a distância. Outra tradição que deve acontecer pela internet são os círculos de estudo religioso conhecidos como halaqa. Mas as autoridades temem que essas opções não sejam o bastante para quem está cansado de se isolar.
Mesmo com mesquitas fechadas, parte da população pode decidir se reunir em casa, desrespeitando as medidas de isolamento social. É tradicional que as pessoas se congreguem, por exemplo, para assistir às famosas novelas de ramadã -mega-produções que duram todo o mês e marcam o calendário cultural.
“As pessoas tiveram bastante paciência no ano passado, quando nós impusemos restrições radicais”, diz Ahmed Gaaloul, que foi ministro de Esporte e Juventude na Tunísia em 2020. “Mas elas estavam esperando que a pandemia acabasse logo. Neste ano, estão resistindo às medidas de isolamento porque a opinião pública mudou.” Isso explica, diz Gaaloul, por que governos estão tentando abrir brechas, já prevendo que será difícil forçar o isolamento total.
Na Arábia Saudita, por exemplo, a capacidade da Mesquita do Profeta -uma das mais sagradas do islã- foi reduzida de 350 mil pessoas para 60 mil, e com distanciamento social. Quem provar que já está imunizado poderá peregrinar a Meca. Nos Emirados Árabes Unidos, será possível participar das rezas noturnas, que tinham sido proibidas em 2020 durante o primeiro ano de ramadã pandêmico.
“A questão do isolamento durante o ramadã toca em um ponto sensível nas nossas sociedades, toca na emoção e na fé das pessoas”, o ex-ministro tunisiano diz. Tanto que, se em 2020 as pessoas aceitaram a proibição dos funerais das vítimas de Covid-19, neste ano elas estão burlando as leis e escondendo a causa da morte de seus familiares para poder seguir com seus rituais.
Para além do isolamento social, um outro desafio para os governos será convencer os setores mais conservadores de que a vacinação não quebra o jejum. Antecipando essa resistência, justamente no momento em que países correm para vacinar suas populações, autoridades religiosas emitiram uma série de anúncios dizendo que a injeção não interfere no ramadã.
Nesse sentido, o pronunciamento das autoridades sauditas -que controlam as mesquitas mais sagradas, em Meca e Medina- tranquilizou os reticentes. Uma maneira de contornar essa resistência é vacinar a população à noite, nas mesquitas, fora do horário de jejum. Assim, as autoridades podem lidar também com a fadiga de quem outrora pensou que, à esta altura, a pandemia já teria acabado.
“Ao vacinar as pessoas, nós passamos a mensagem de que tudo isso vai acabar um dia, o que ajuda a população a aceitar passar mais um ramadã em isolamento social”, Gaaloul diz.
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