IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Criada em 1949 para unificar a defesa da Europa sob o comando dos Estados Unidos contra a União Soviética, a Otan agora luta não só para tentar se redefinir no ambiente multipolar do século 21, mas também contra uma grande ameaça interna.
Trata-se do inédito acordo militar entre dois de seus 30 membros, França e Grécia. Segundo o texto, costurado em setembro e ratificado na semana retrasada, os países se comprometem à defesa mútua em caso de ataque externo.
Até aí, o artigo 5º da carta de fundação da Organização do Tratado do Atlântico Norte prevê o mesmo –só que contra inimigos externos ao bloco. No novo pacto, a defesa vale também contra ataques dentro do clube militar.
O foco tem nome e sobrenome: a Turquia do presidente Recep Tayyip Erdogan, o estratégico membro da Otan com um pé no Oriente Médio.
A rivalidade entre Ancara e Atenas é histórica e com um fundo religioso e cultural –os países já travaram quatro guerras desde que a Grécia deixou o Império Otomano em 1830 e dividem a ilha de Chipre em zonas de influência.
A entrada de ambos os países na Otan poderia ser um fator de distensão, mas na prática isso não ocorreu. O mais novo ponto contencioso é a riqueza em óleo e gás no subsolo da plataforma continental que dividem no Mediterrâneo.
Em agosto do ano passado, a prospecção turca de áreas de hidrocarbonetos quase levou os rivais às vias de fato. No mês passado, um navio de guerra turco ameaçou afundar uma embarcação maltesa que estudava a rota marinha do East Med, um gasoduto que ligará Israel a Chipre e à Grécia.
A França também desgosta da assertividade de Erdogan, que apoia um dos lados na guerra civil da Líbia, produtor de petróleo tradicionalmente na órbita francesa.
Erdogan alimenta uma rixa pessoal com o presidente francês, Emmanuel Macron.
Com a Rússia estabelecida no oeste sírio desde que interveio na guerra civil iniciada em 2011, o leste do Mediterrâneo vive um momento de rivalidades cruzadas. Ancara, por exemplo, se antagoniza a Moscou na Líbia e na Síria, mas por ora acertou-se com o Kremlin no Cáucaso e está ampliando a carteira de compras de armas russas.
Assim, a Turquia se tornou alvo preferencial dos EUA, que não aceitam a presença de material militar de Vladimir Putin numa aliança que preza a interoperabilidade. Erdogan deu de ombros.
Sua posição sempre foi autônoma, em parte refletindo o desgosto pela rejeição da União Europeia em aceitar um membro muçulmano –para a guerra, sua posição geográfica sempre fez dela um aliado cobiçado, tanto que os EUA fizeram inúmeras ações a partir da base de Incirlik.
Isso levou à aproximação entre Paris e Atenas. “Se formos atacados, teremos ao nosso lado a mais potente força armada do continente, a única potência nuclear europeia”, disse o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, na sessão do Parlamento que ratificou o acordo no dia 7.
Não por acaso, ele omitiu a outra potência atômica da Otan, o Reino Unido, que deixou a União Europeia em 2020.
Londres está aliada ao projeto de incremento militar no Indo-Pacífico com os EUA, contra a expansão chinesa.
A França, historicamente distante dos britânicos, ficou especialmente irritada quando Washington e Londres firmaram um pacto militar com a Austrália, visando dotar a ilha-continente de submarinos nucleares –despachando para a lixeira a venda bilionária de embarcações convencionais francesas a Camberra.
Ao mesmo tempo, Paris fez questão de demonstrar que ainda está no jogo maior: na quarta (13), enviou pela primeira vez em anos um navio para cruzar o estreito de Taiwan, sinal de apoio à ilha que Pequim considera sua e ameaça militarmente o tempo todo.
Esse deslocamento estratégico para o Indo-Pacífico apavora os Estados ao leste da Otan, que temem o apetite de Putin, que já agiu na Ucrânia em 2014. Toda essa animosidade explica a aproximação franco-grega.
Ela permitirá às forças de ambos os países utilizar portos e aeroportos militares de forma mútua. De quebra, é bom negócio para Macron, que enfrentará a busca pela reeleição no ano que vem.
No escopo do pacto, a Grécia fechou um pacote de US$ 7,5 bilhões (R$ 41 bilhões, no câmbio de sexta, 15) para comprar 24 caças Rafale, 4 corvetas e 4 fragatas, além de mísseis.
O comando da Otan não gostou. “O que eu não acredito é no esforço de fazer algo fora do arcabouço da Otan, ou competindo ou duplicando a Otan, porque a aliança continua sendo a pedra fundamental da segurança europeia e norte-americana”, afirmou o secretário-geral, Jens Stoltenberg, no dia 7. Na prática, contudo, ele pouco pôde fazer.
Com o foco americano pós-retirada do Afeganistão quase todo na Ásia, a exposição da Europa ao maior atrito com a Rússia e fissuras internas sérias, a própria ideia de aliança ocidental fica desafiada.
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