Como milhares de brasileiros, Nicole Oliveira, de 29 anos, teve a covid-19 no fim do ano passado em meio à explosão de infecções. Os sintomas foram parecidos com os de gripe e a recuperação, em casa. O que ela não esperava era ficar tão mal depois de se livrar do vírus. “Entrei na covid com 29 anos e estou saindo com 59. Não me reconheço no meu corpo.”
A fraqueza é tanta que agora, dois meses depois de curada, a jovem está atrás de neurologistas e exames de nomes complicados para tentar entender e corrigir o estrago que o coronavírus fez. O aumento de infecções alavancado pela variante Ômicron soa o alerta para novos casos de pacientes que, assim como Nicole, têm sintomas prolongados. E deve elevar a demanda por tratamentos pós-covid, já alta em função das ondas anteriores.
Os efeitos prolongados da infecção pelo Sars-Cov-2 têm nome – covid longa ou pós-covid -, mas são rodeados de incertezas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera covid longa os sintomas que se prolongam três meses após a infecção. Entre parte dos médicos e cientistas, a definição de covid longa considera até prazos menores do que este. Um em cada cinco infectados pode ter sintomas depois de se recuperar da fase aguda, calcula a OMS.
“Tenho uma fraqueza absurda e muita tremedeira, tontura e enxaqueca”, diz Nicole, infectada no meio de dezembro. A jovem havia tomado duas doses da vacina. Hoje, ela tem dificuldade até para pegar o trem para o trabalho e crises de ansiedade. “É a pior época que estou vivendo.”
A fraqueza está no topo das queixas mais comuns de quem teve a covid. Nos consultórios, também aparecem sintomas como perda de memória e dificuldade de concentração. “Causa impacto em ações de maior complexidade, como fazer transação bancária ou tomar decisões no trabalho”, diz Milene Ferreira, gerente médica dos serviços de reabilitação do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Até mesmo pessoas com quadros leves podem apresentar a covid longa. “Tenho pacientes que não tiveram nenhuma manifestação respiratória importante, ficaram em casa, mas persistiram com cansaço e dificuldade de concentração”, diz a médica Linamara Rizzo, professora de fisiatria da USP e idealizadora da Rede Lucy Montoro, de reabilitação no Estado de São Paulo.
“É plausível que a nova onda com a Ômicron aumente bastante o número de pessoas com a covid longa. Mesmo que a pandemia acabe, vamos ficar com milhões de pessoas no mundo com sequela”, diz o médico Regis Rosa, pesquisador do tema pelo Programa de Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS) e membro de um grupo de trabalho da OMS sobre covid longa.
Só na capital paulista, 27,2 mil pacientes seguem em acompanhamento após internação pela covid, segundo a Prefeitura. Pacientes hospitalizados por longo tempo têm maior risco de sequelas. Há relatos já documentados de sintomas físicos e mentais um ano após internação em UTI.
Agora, as novas pesquisas científicas nessa área precisam responder a perguntas-chave: Qual o papel da vacina para prevenir a covid longa? E qual o impacto da variante Ômicron nas sequelas? Para a primeira questão, os estudos já publicados sugerem que, sim, as vacinas ajudam a proteger da covid longa. Um dos mecanismos é óbvio: elas previnem infecções e hospitalizações. Mas, até mesmo entre os vacinados que acabam se infectando, o imunizante também parece ter papel protetor.
Uma pesquisa preliminar com 3 mil participantes em Israel concluiu que pessoas que foram vacinadas e tiveram covid tinham menos chance de relatar dores de cabeça e musculares após a infecção do que não vacinados que também contraíram a covid. Outro estudo no Reino Unido chegou a conclusões semelhantes.
Uma das hipóteses de por que isso acontece é o fato de as vacinas acelerarem o combate ao vírus, reduzindo as replicações. Isso poderia evitar a criação de “reservatórios ocultos” de vírus no corpo, capazes de atacar órgãos tempos depois. Além disso, as vacinas direcionam a resposta imune do organismo para atacar o vírus e não outras partes do corpo. Uma das possíveis causas da covid longa é justamente essa resposta inflamatória exagerada do corpo para se defender.
Já sobre o papel da Ômicron na covid longa, o mundo ainda caminha no escuro. Como a variante só foi identificada em novembro, ainda há pouco monitoramento sobre infectados pela Ômicron. Na linha de frente da reabilitação, porém, médicos dizem que algumas queixas mudaram: a perda de olfato, comum em ondas anteriores, aparece menos agora. Além disso, a Ômicron parece poupar mais o sistema nervoso periférico. Formigamentos nas mãos, por exemplo, estão menos frequentes agora, afirma Milene, do Einstein.
Além de prever o impacto das variantes na covid longa, descobrir quem tem mais risco de sintomas prolongados é outra estratégia para atacar o problema. Um estudo publicado na revista Cell em janeiro ofereceu as primeiras pistas: entre fatores associados à covid longa estão a presença de anticorpos que atacam equivocadamente tecidos do corpo e a reativação do vírus Epstein-Barr, que infecta boa parte das pessoas, geralmente quando jovens, e depois fica inativo.
Para Rosa, os planos de ação agora dependem de pesquisas desse tipo – um estudo do Proadi-SUS com 3 mil pacientes busca mais pistas – e da estruturação da rede de saúde para dar conta do alto número de pessoas que já precisam ou vão precisar de apoio. “A pandemia das sequelas ainda vai durar muito mais tempo”, afirma. “Precisamos treinar profissionais e traçar planos de reabilitação personalizados.”
Em hospitais de ponta de São Paulo, atividades de reabilitação para quem tem sintomas duradouros vão desde caminhadas monitoradas por aparelhos até jogos tecnológicos para ativar o cérebro. Quem tem a covid longa pode ir às sessões duas ou três vezes por semana. Nem sempre é preciso tomar remédios.
O Einstein recomenda que pessoas que continuam com sintomas 21 dias após a infecção busquem ajuda. O Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, também orienta que pacientes não demorem a buscar avaliação. “Estão perdendo tempo precioso. O risco é ter um quadro mais arrastado”, diz a coordenadora do serviço de reabilitação do Sírio, Christina May. A demora na busca de ajuda pode agravar outros quadros, como ansiedade e depressão – também bastante comuns pós-covid.
Em até três meses, é possível devolver qualidade de vida a pacientes com quadros moderados – mas isso demanda atenção semanal. Longe dos grandes hospitais privados, porém, pacientes que dependem do SUS amargam recuperação longa e difícil. O ator e produtor Hugo Adescenco, de 34 anos, não voltou a ser metade do que era antes da covid. No meio do ano passado, durante a infecção, ficou debilitado, mas se recuperou em casa.
“Eu tinha um programa na internet e sempre apresentei tranquilamente. Hoje, perco o fio da meada, não consigo decorar texto.” O cansaço também impede atividades como andar de bicicleta. Já os médicos não acreditam nos sintomas. Sem saber o que fazer, ele busca pesquisas na internet e faz palavras cruzadas. “Me sinto meio abandonado.”
Grupos de WhatsApp e Facebook estão lotados de pessoas com efeitos prolongados da covid sem assistência. Nesses espaços, elas trocam angústias e dicas de medicamentos – alguns, sem eficácia comprovada – para aliviar a dor. Em um desses fóruns está o segurança Anderson Martins, de 33 anos, que só conseguiu fazer até hoje 20 sessões de fisioterapia e relata espera de três meses para a reabilitação. Em julho, a covid-19 causou um acidente vascular cerebral (AVC) que o deixou dez dias na UTI e paralisou o lado direito do corpo.
Casado e pai de um bebê, Martins voltou para casa em uma cadeira de rodas, afastou-se do emprego e não sabe quando conseguirá voltar. “Consigo ficar em pé, mas manco muito de uma perna. Tenho espasmos quando estou dormindo”, diz ele, que tira R$ 250 do benefício que recebe do governo para comprar remédios. A cabeça não está melhor: “Um dia, tentei entrar em um trem para ir a um exame. A pressão subiu, a mão suava, como se fosse uma crise de ansiedade. Tive de voltar para casa.”
Por causa da alta demanda por reabilitação, secretários de Saúde paulistas pediram apoio do Ministério da Saúde para converter centros de atendimento para covid em unidades de reabilitação. “Calculamos que, por muitos anos, as pessoas vão precisar de acompanhamento”, diz Geraldo Reple, secretário de São Bernardo do Campo e presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo.
A pasta federal, até agora, não tem uma estimativa do número de pessoas com a covid longa no Brasil – apesar de apresentar balanço diário de “recuperados” da doença. No Rio, a demanda do pós-covid fez o Hospital Ronaldo Gazolla, uma das unidades públicas de referência, criar um centro de reabilitação de pacientes, com capacidade de 8 mil atendimentos mensais. A inauguração será este mês. “Todos os esforços durante as fases críticas foram para salvar vidas e agora esse olhar para pacientes com sequelas tem de ser intensificado”, diz Roberto Rangel, presidente da RioSaúde, que administra o hospital.
No Estado de São Paulo, pacientes com sequelas da covid são encaminhados para reabilitação por meio das Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Segundo o governo paulista, há 30 centros para recuperação de pacientes que ficaram internados. Na Prefeitura, o atendimento inicial é feito por teleconsulta. Sequelas leves podem ter reabilitação nas próprias unidades básicas. Já os casos mais complexos vão para centros especializados.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que, em dezembro passado, ampliou a capacidade de serviços de reabilitação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. Também incluiu na tabela de procedimentos do SUS ações de reabilitação pós-covid. Segundo a pasta, o SUS tem 268 centros especializados em reabilitação e 47 oficinas ortopédicas, além de 237 serviços de reabilitação habilitados em uma única modalidade. “Cabe aos gestores locais a definição dos pontos de atendimento, para a oferta dos serviços aos pacientes”, afirmou.
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