SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O relógio marcava 9h15 nesta quinta-feira (14) quando esta reportagem começou a se paramentar para acessar o lugar mais desejado nesta pandemia de Covid-19 no Brasil.
Foi preciso usar máscara -acessório já comum nesta pandemia-, mas também touca e isolar o calçado com uma tela de proteção. Um traje branco de tecido maleável, com blusa e calça, completou o dress code.
Não era permitido utilizar nenhum acessório, como relógio e anéis, nem maquiagem no rosto. As mãos tinham que estar limpas.
Pronto: o caminho já estava liberado para o ingresso ao prédio onde está a única vacina contra a Covid-19 em solo brasileiro até o momento.
A reportagem ingressou no prédio de formulação e envase do Instituto Butantan, na zona oeste de São Paulo, onde é produzida em escala industrial e sem paradas a vacina Coronavac, em parceria com o laboratório chinês Sinovac.
Já se sabe que a Coronavac é segura e possui eficácia geral de 50,38% contra o coronavírus, índice dentro dos parâmetros da OMS (Organização Mundial da Saúde). Para ser distribuído e aplicado, o imunizante só precisa do aval para uso emergencial da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que vai analisar o pedido em reunião agendada para este domingo (17).
No prédio do Butantan, no entanto, os trabalhos estão a todo vapor desde o final de novembro, quando o primeiro lote da vacina desembarcou no aeroporto de Guarulhos (Grande SP).
Outros cinco carregamentos com Coronavac chegaram até o dia 30 de dezembro de 2020 e renderam ao Butantan a possibilidade de envasar e estocar quase 11 milhões de doses para o início da campanha de vacinação da população.
É isso que está acontecendo no primeiro andar do prédio visitado pela reportagem. Ao longo de 24 horas, durante os sete dias da semana, uma equipe de 373 pessoas trabalha num processo minucioso de envase que segue regras rígidas para evitar perdas.
A equipe ganhou um acréscimo de 124 colaboradores para acelerar a montagem dos frascos com a vacina líquida, único ativo capaz de conter a pandemia que já matou 206 mil brasileiros.
O prédio onde o envase ocorre é monitorado por câmeras, e o acesso só é liberado por funcionários autorizados.
A reportagem não pôde entrar nos espaços onde o processo ocorre porque no ambiente de envase a paramentação é ainda mais rigorosa, diz Ênio Xavier, farmacêutico e responsável pelo setor no Instituto Butantan. “Por se tratar de um processo asséptico, as áreas de envase têm processos controlados para evitar qualquer tipo de contaminação”, diz.
A reportagem acompanhou o trabalho da equipe do lado de fora das salas pelo vidro do corredor. Os técnicos diretamente envolvidos na linha de produção usam um macacão especial que encobre o corpo inteiro. No local, a temperatura ambiente não pode passar dos 20˚C.
Nenhuma parte do corpo dos técnicos pode ficar exposta, diz Xavier. Outra peculiaridade está na movimentação da equipe dentro do espaço. Ninguém ali pode fazer movimentos bruscos durante o envase para não liberar partículas no ar -os funcionários ficam com os braços em riste o tempo todo para evitar tocar no uniforme.
“Se tiver alguma partícula suspensa no ar, ela pode acabar dentro do frasco da vacina, que terá de ser descartada. A gente treina a equipe e trabalha de forma minuciosa para evitar essa perda”, afirma o farmacêutico.
Até o momento, diz Xavier, o índice de perdas é baixo, de apenas 0,2%.
Todo o processo de assepsia do ambiente de envase é checado num procedimento conhecido como “media-fill”. Nele, todas as etapas são testadas em ambientes de cultura dentro de estufas e, se houver a proliferação de micro-organismos, o processo precisa ser suspenso e revisado.
Cada contêiner com 200 litros da vacina líquida despachada da China pode gerar, em média, 320 mil doses. O Butantan diz que cada frasco produzido contém 6,2 mLl, que rendem até dez doses de imunização.
Os trabalhos estão acelerados com o uso de duas máquinas que injetam o líquido e uma terceira que faz a selagem dos frascos. Ela é capaz, segundo o Butantan, de selar 10 mil frascos por hora e produzir até 1 milhão de doses em 24 horas de funcionamento.
No prédio visitado pela reportagem, o processo começa com o recebimento da vacina líquida dentro de contêineres refrigerados. O líquido é transferido para tanques de agitação por meio de uma bomba automática e, depois, distribuído para o envase, que é a segunda etapa do processo.
No momento, são duas máquinas automatizadas de envase, uma com seis agulhas e outra com oito, mais rápida. As máquinas injetam os líquidos nos frascos na dose exata.
Dali, os frascos saem com as borrachas já posicionadas, mas é na etapa seguinte que serão lacrados, com a seladora. Novamente, dois funcionários, um em cada lado da sala, executam movimentos mínimos, como para desenroscar um frasco da “estrela” (como é chamada a engrenagem que faz a esteira rodar) ou para reabastecer a máquina.
A esteira continua rolando para uma sala agora menos controlada, à qual a reportagem teve acesso. No pequeno espaço de 16 m², mais dois funcionários e um supervisor acomodam os frascos em bandejas, que são depois empilhadas para seguir para a próxima etapa. São 228 frascos por bandeja, com 96 bandejas por pilha, totalizando 21.888 frascos.
O barulho nessa sala é ensurdecedor por causa da batida dos frascos. É como se fosse uma fábrica de vidrinhos, que rolam pela esteira em um ciclo contínuo e são separados.
A pilha de bandejas -chamada pallet- segue, então, para a terceira etapa do processo, que inclui a inspeção visual de cada frasco para verificar se o vidro e a selagem apresentam defeitos. É nesse controle de qualidade que a equipe também analisa se alguma partícula estranha está em suspensão dentro do frasco.
Na sala de inspeção visual, 12 funcionários fazem a avaliação, em turnos compostos por dois intervalos de 20 minutos de inspeção com pausas de 5 minutos e um turno de 20 minutos com 15 minutos de pausa, explica Karina Dorna, supervisora desta seção.
Sentadas em cadeiras em frente a um visor com duas telas, uma preta e uma branca -para ver as partículas em suspensão brancas no fundo preto e vice-versa-, as técnicas pegam cerca de 4 a 5 frascos acomodados nas bandejas da prateleira central, agitam, e olham contra a luz para verificar se há algum problema no vidro ou no conteúdo.
Quem domina a fase de inspeção da Coronavac são as mulheres. Segundo Xavier, há homens também na equipe, mas elas são maioria. “É um processo bem crítico, requer muita habilidade e elas [as mulheres] são mais criteriosas.”
Na sequência, os frascos são encaminhados para a rotulagem e a embalagem, fases em que são fixadas informações sobre o número do lote, a data de fabricação e a validade da vacina.
Depois disso, os frascos seguem para um local, mantido sob sigilo pelo Butantan por questões de segurança, onde permanecem refrigerados entre 2ºC e 8 º C.
A visita da reportagem terminou na sala de inspeção, mas foi possível ver algumas caixas empilhadas da Coronavac sendo levadas para o local secreto.
Instado a dizer sobre o que sente ao ver as doses de Coronavac prontas para uso, o farmacêutico disse que tem muito orgulho de integrar a equipe que combate a Covid-19 no Brasil.
“É um momento histórico. É uma produção que vai salvar vidas, e essa sensação de euforia e ansiedade eu já vejo aqui na equipe. Imagine quando a Coronavac estiver nos postos de vacinação”, afirma Xavier, que trabalha no Butantan há oito anos.
Notícias ao Minuto Brasil – Brasil