SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Manter o nome no inconsciente das pessoas é o objetivo primário de qualquer grife. Manter esse nome por cem anos, porém, ultrapassa qualquer fórmula ou exercício de futurologia, porque, antes, é preciso fazer dele um mito.
A italiana Gucci, nova centenária do pedaço, além de alma do filme “Casa Gucci”, de Ridley Scott, é envolta de tal forma em seus mitos que, nos últimos sete anos, promoveu uma revolução de costumes.
E o feito nada tem a ver com Lady Gaga, a estrela que encarna Patrizia, a socialite que em meados dos anos 1990 encomendou a morte do ex-marido e herdeiro da grife, Maurizio Gucci, interpretado no longa por Adam Driver.
O responsável por pôr o sobrenome do clã de Florença no quarto lugar das etiquetas de luxo mais valiosas, fazer a improvável mistura de flores, cores, alfaiataria e glamour flamboyant tomar as ruas e impulsionar o recorde de 22.705 citações da marca em letras de música é alguém bem menos afeito aos holofotes.
Alessandro Michele não costuma dar entrevistas. Quando as concede, fala em italiano, traduzido para o inglês por uma tradutora. Não que ele não entenda a língua, mas, à parte a desculpa de que assim se expressa melhor, faz o interlocutor se lembrar que ele comanda o renascimento do estilo italiano desde que assumiu a marca, em 2015.
Suas roupas e acessórios exalam o barroco atrelado à influência católica, além de carregar sexualidade nos peitos, brinquedos e trajes fetichistas tornados elementos de moda. Isso sem contar a manufatura artesanal do couro, revista em acessórios que podem virar tudo, até a cabeça do Mickey, como quando emulou a “decadência com elegância” do estilo francês num desfile, adivinhe, em Paris.
“Por muitas vezes, no passado, tentaram fazer o mundo retroceder ao que era antes da Revolução Francesa, mas nada prosperou, porque o mundo só anda para a frente e as pessoas mudaram, não porque a moda ou a política decidiram que mudariam”, diz Michele, em entrevista a este repórter.
Esse estilista romano que talvez seja o diretor criativo mais incensado da indústria é visto, com razão, mais como um artesão do tempo do que um costureiro de coisas táteis, que define seu trabalho pelo prisma de “olhar adiante para fazer diferente”.
“É impossível planejar o meu trabalho. É algo que acontece de forma muito orgânica e natural. Hoje, não temos mais tempo para preservar nada além da beleza. Essa ideia de preservar coisas que ponham o mundo em retrocesso deve ser evitada a todo custo.”
Profundo conhecedor da produção cultural humana, que estuda e exibe em cada uma de suas coleções, Michele acredita que “assim como a música, o cinema, as artes visuais e a literatura, a moda tem de dar voz ao que está fora, na rua, na vida”. “Não há outro método para mim. O que faço é a reprodução da vida.”
Por isso, prefere não gastar seu tempo cronometrado e uma lasca do império de US$ 16,6 bilhões da marca do grupo Kering, também dono de Saint Laurent e Bottega Veneta, pagando várias apresentações faraônicas por ano e os cachês de celebridades do Instagram. Em vez disso, aposta em sua própria gangue e eventos particulares nos quais pode pousar sua mão dourada.
Há três anos, levou a Xangai a mostra “O Artista Está Presente”, com curadoria de Maurizio Cattelan, artista com quem Michele desenvolveu o projeto, para questionar o que é cópia no mundo de hoje.
As obras refletiam sobre o valor da imitação como forma de arte, num momento em que a própria Gucci enfrentava acusações de ter copiado, num desfile em 2017, o modelo de uma jaqueta do alfaiate nova-iorquino Dapper Dan.
Numa sacada de mestre, o estilista convidou depois o designer lendário do Harlem para criarem juntos propostas de roupas, desta vez, creditadas, que viraram um sucesso retumbante e puseram Dan novamente no mapa dos fashionistas mundialmente.
Logo no início da pandemia, a marca resolveu criar o próprio festival de cinema, o GucciFest e convidou cineastas do calibre de Gus Van Sant para, em vez do desfile, mostrar suas roupas em pequenos curtas-metragens. Convidou ainda designers em ascensão para dividir a ribalta e, assim, ter o próprio calendário de lançamentos.
A ideia perdurou até este mês, quando a Gucci anunciou o retorno para as passarelas de Milão, numa retomada da semana de moda local que já sentia o baque de não ter a grife que costuma abrir sua maratona de apresentações.
A verdade é que, hoje, ter o selo do universo de Alessandro Michele colado em músicas, filmes e material visual eleva o produto a um patamar de arte e amplifica a audiência. O pop agradece. Harry Styles, por exemplo, foi de ídolo teen a símbolo sexual da nova geração quando aderiu ao look Gucci em suas aparições e na identidade de seus clipes.
Quando apareceu na capa da Vogue americana em dezembro do ano passado, trajado com vestido Gucci, pôs no balaio das redes s ociais a discussão da quebra da divisão de gêneros proposta por Michele em seus desfiles e reproduzida por seus concorrentes.
No Brasil, a marca chamou artistas para vestirem suas peças e comemorarem os cem anos da grife. Entre eles, estava Majur, artista não binária que traduz toda a diversidade implicada nos cortes precisos do diretor criativo.
O último desfile, no início do mês e primeiro a reunir plateia, traduziu esse legado comportamental alinhavado por ele nos últimos anos. Em plena Hollywood Boulevard, numa Los Angeles iluminada pelos letreiros de neon, dezenas de modelos saíram em marcha exibindo o que o designer chamou de “Love Parade”, algo como “passeata do amor”.
Inspirado no glamour hollywoodiano do passado, o estilista fundiu bolinhas de pompoarismo, lingerie erótica e estética queer ao imaginário do faroeste americano, do glamour carregado de paetês dos tapetes vermelhos à miscelânea gráfica que compõe sua trajetória desde que ele deixou a divisão de acessórios da marca para a comandar.
“Recentemente, estive pensando sobre como a Gucci está conectada a esse mundo do cinema, enquanto tantas marcas olham para a monarquia, a aristocracia e esse mundo burguês de perfil jet setter”, alfineta Michele. “Depois do lockdown, todo esse momento que passamos, eu quis dar um recomeço para a moda.”
Ele afirma não ser possível definir ainda como a pandemia afetou, ou se afetará, a forma como enxerga o mundo e conduz sua tesoura, porque ainda tudo é recente e “só vamos perceber essas mudanças com o passar dos anos”.
Observa, no entanto, que “a possibilidade da morte certamente nos aproximou da linha entre vida e morte”. “Não posso fazer nada mais do que viver. Esse trabalho é também sobre o medo de morrer, o que nos torna humanos e nos aproxima dos animais”, ele afirma.
Por isso, o espetáculo proposto por ele nesta nova coleção, que chega em abril ao país, tem a ver com o desejo, “e o desejo, você sabe, é erótico”.
“Moda é sobre transformar desejo em roupas. Esse desfile é uma forma de abraçar o grande retorno, fazer as pessoas voltarem às ruas, para esse lugar de liberdade e amor. E amor é uma palavra tão forte que não poderia ser expressa em um desfile, ele é mais uma passeata”, diz, relacionando o seu ofício a uma expressão puramente animalesca.
Tão animal quanto a gastança que clientes pelo mundo fazem para deter um pedaço dessa nova casa Gucci, que está mais para mansão, como a temporária que montou neste mês em São Paulo com vestidos exclusivos que partem de R$ 50 mil e podem chegar a R$ 300 mil.
No rap “Gucci Gang”, o rapper Lil Pump traduziu o desejo por uma peça cantando o termo que batiza a música, tocada nas lojas da marca como trilha sonora. Das dezenas de milhares de vezes em que o nome aparece em faixas musicais, em nenhuma delas a marca pagou um centavo. Nem abriu a carteira para o filme que coroa sua história.
“Não tive nada a ver com o filme, a não ser o fato de termos aberto os arquivos para a pesquisa. Mas acho interessante como uma marca pode ser tão popular ao ponto de liderar um roteiro de filme”, disse na entrevista realizada após o desfile em Los Angeles, dando como encerrado o assunto sobre o longa lançado agora.
Michele emenda com uma expressão para entender suas roupas, o momento da moda e o que desejam seus devotos que, assim como Lady Gaga faz no filme, rezam “em nome do pai, do filho e da casa Gucci”. “Agora, já podemos ir à festa.”
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