(FOLHAPRESS) – O Ministério da Saúde revisou a cartilha que afirmava que “todo aborto é crime”, mas minimizou os riscos da gravidez na adolescência na nova versão do texto.
Na primeira edição, de junho, o guia contrariava o Código Penal ao dizer que não existe aborto legal no país, mas sim aborto com excludente de ilicitude -ou seja, sem possibilidade de punição à mulher -e provocou críticas de especialistas e entidades de direito da mulher e saúde.
O texto foi removido, mas a cartilha manteve informações distorcidas e a recomendação para que o procedimento não seja realizado após a 22ª semana de gestação ou quando o feto pesar mais de 500 gramas.
O ministério também incluiu um trecho que minimiza os riscos de gravidez na adolescência –sem referências técnicas–, e sugere que outros fatores sejam levados em conta antes do aborto além da “idade isolada” da criança ou adolescente.
Ao longo de duas páginas, a cartilha afirma que os estudos que mencionam haver risco de vida para gravidez em menores de 15 anos são inconsistentes e que as “evidências mais recentes” apontam que a gestação em mulheres jovens não é causa automática de risco à vida, devendo cada caso ser analisado individualmente.
A inclusão do trecho acontece após a mobilização social para que uma menina de 11 anos vítima de estupro em Santa Catarina conseguisse abortar. A criança foi coagida a desistir do aborto pela juíza e a promotora do caso. O procedimento só foi realizado depois que o Ministério Público Federal interveio.
Como mostrou a Folha, uma menina de 11 anos de Teresina (PI) está grávida pela segunda vez após ser violentada. Ela deu à luz há um ano, também depois de ter sido vítima de um estupro e não ter realizado o aborto legal a que tinha direito.
Assim como ocorreu com a primeira versão, o documento revisado foi publicado no site da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, responsável pela elaboração, sem nenhuma divulgação por parte do ministério. A atualização foi disponibilizada na sexta-feira (9).
No texto publicado no site da secretaria, o secretário de Atenção Primária, Raphael Câmara, afirma que “os pleitos enviados pela Febrasgo [Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia] e pelo CFM [Conselho Federal de Medicina] foram acatados”.
Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora do Instituto de Bioética Anis, ONG a favor da descriminalização do aborto, avalia que a cartilha continua problemática, com equívocos jurídicos e diversas afirmações sem base em evidências de saúde.
“Um dos trechos mais graves da atualização mudou para pior, para sustentar que não há necessariamente risco agravado nas gestações de crianças e adolescentes, com diversas afirmações sem referências”, afirma.
“É claramente uma tentativa de reação à mobilização social ‘Criança não é mãe’, que teve grande repercussão após o caso da criança de 11 anos de Santa Catarina que quase foi impedida de realizar um aborto legal.”
O texto que acompanha a cartilha no site da Secretaria de Atenção Primária afirma que o guia “atualiza os dados referentes a gravidez na adolescência, apresentando evidências recentes que mostram algumas contradições e inconsistências em relação à quantificação do risco de morte”.
A cartilha do Ministério da Saúde também condena o “feticídio”. O texto diz que a entrega do bebê para adoção deve ser uma alternativa para “preservar a vida do feto, independentemente das circunstâncias” em que a gestação tenha ocorrido.
“Não se deve entender o desfecho de consumar a morte embrionária e/ou fetal como o ideal no afã de tentar a qualquer custo a morte da criança no útero”, afirma.
Em junho, o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde e 110 entidades da sociedade civil enviaram uma manifestação ao ministério em que apontam que o termo “feticídio” não é apropriado e que a “indução do óbito fetal” -tecnicamente correto- é parte do procedimento possível para a realização do aborto acima da 22ª semana de gestação em casos de violência sexual.
Para o Instituto Anis, o guia reforça o estigma de que o aborto é cruel, mesmo nos casos previstos em lei. A entidade avalia que o documento também erra ao manter no texto a “objeção de consciência” como direito total dos médicos -o que, na prática, limita o direito de mulheres e crianças ao aborto legal- e a vedação à telemedicina.
Segundo a secretaria, o material agora não recomenda a realização do aborto por telemedicina para que seja “acompanhado presencialmente por um médico no ambiente hospitalar, onde estão disponíveis aparelhos e recursos para eventuais intercorrências”.
A revisão do documento ocorreu depois que entidades ligadas à saúde e aos direitos das mulheres rebateram as informações e acionaram o STF (Supremo Tribunal Federal) em junho para que a cartilha fosse revogada imediatamente.
Diante dos questionamentos, o Ministério da Saúde promoveu uma audiência pública para discutir o texto, mas o evento foi agendado com apenas uma semana de antecedência e a maioria dos convidados validou a posição do governo.
Em julho, o ministro Edson Fachin, relator da ação no STF, cobrou explicações do governo federal e afirmou que parece haver um “padrão de violação sistemática do direito das mulheres” em relação à realização de aborto nos casos previstos em lei.
O aborto é autorizado no Brasil em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. A nova diretriz da OMS (Organização Mundial de Saúde) sobre o tema, de março, não estabelece limites gestacionais para a realização do procedimento.
Obstetras apontam que a gravidez durante a adolescência representa uma série de riscos tanto para a gestante quanto para o feto, incluindo a morte da mãe e o nascimento precoce do bebê. Diante disso, explicam, a gestação é considerada sempre de alto risco.
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