Medo de reação vacinal e falta de acesso à saúde emperram imunização no país

CLÁUDIA COLLUCCI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A venezuelana Kleiveliz Barreto, 18, de Pacaraima, em Roraima, tem três filhos entre sete meses e três anos e nenhum deles está com a carteira de vacinação em dia. Faltam doses contra a poliomielite, rotavírus, a tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola), a pentavalente, entre outras.

“Por que esse atraso?”, pergunta o enfermeiro José Luís Gutierrez à mãe em uma visita domiciliar. “Porque eu vou ao posto e nunca tem vaga. A gente chega lá, espera, espera, e mandam voltar no dia seguinte. Quando eu estava grávida, era a mesma coisa.”

Para chegar à UBS da Pedra, Kleiveliz caminha quase uma hora segurando Nayara, de sete meses, no colo. De mãos dadas, Mateus, 3, e Nixany, de 1 ano e 7 meses, tentam acompanhá-la, mas logo se cansam e começam a chorar. “É um sacrifício para chegar lá e não ter atendimento.”

Na UBS, a reportagem encontrou Janima Peres, 22, indígena da etnia taurepanã. Sozinha na sala de espera, ela aguardava havia duas horas para vacinar o filho de três anos, após três dias tentando a imunização.

“A gente vem, fica três, quatro horas esperando e aí falam que não tem mais vaga, que precisa voltar outro dia. Eu só insisti porque estou na casa da minha irmã, que fica perto daqui”, afirma.

Os relatos explicam algumas das razões para o atraso no esquema vacinal da população infantil, problema enfrentado por 85% dos municípios brasileiros em pesquisa da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) em parceria com o Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde).

Desde 2016, o país apresenta queda na cobertura vacinal e, hoje, todos imunizantes estão abaixo da meta, o que aumenta o risco de reintrodução de doenças que já foram eliminadas, como a poliomielite.

No último dia 27, o Ministério da Saúde iniciou a campanha do Programa Nacional de Vacinação 2023. A partir de maio, o foco será a atualização do calendário vacinal infantil, com ações nas escolas.

A retomada das grandes campanhas de imunização, que não foram incentivadas na gestão Jair Bolsonaro (PL), é considerada muito importante para o resgate da confiança da população nas vacinas, mas gestores de saúde apontam que é preciso atacar também outros gargalos ainda mais complexos.
Na pesquisa da UFMG, com 4.674 municípios, entre as razões apontadas para o atraso ou recusa vacinal estão desde o medo dos efeitos colaterais dos imunizantes (84%) até a dificuldade de acesso aos serviços de saúde (40%).

“É muito alto o percentual de municípios que relatam atraso tanto em relação à primeira dose quanto às demais. Precisamos olhar para esses territórios porque há diferentes causas e que envolvem diferentes estratégias para enfrentá-las”, afirma o pesquisador Jackson Freire, da UFMG.

Uma outra pesquisa coordenada pela Santa Casa de São Paulo, que investigou as razões da hesitação vacinal nas capitais brasileiras, mostra que em 28% dos casos a criança foi levada ao posto, porém não recebeu a vacina. Entre os motivos estão falta de vacina (44%), a sala de vacina estava fechada (11%) e não havia quem aplicasse o imunizante (8%).

Segundo o pesquisador José Cássio de Moraes, professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, também são frequentes casos em que a população tem acesso à sala de vacina, mas a criança não é vacinada com todos os imunizantes de uma só vez.

Aos dois meses, as crianças precisam receber vacinas a contra a pólio, o rotavírus e a tetravalente (contra difteria, tétano, coqueluche, meningite e outras infecções). Não há contraindicação nenhuma em aplicá-las no mesmo dia. No entanto, 40% deixam de fazê-lo, segundo a pesquisa.

“É medo de reação vacinal por parte dos pais? Ou é o vacinador que não quer aplicar a vacina? Precisamos entender o que acontece porque tem muita variação de acordo com cada região”, afirma Moraes.

Em Pacaraima, por exemplo, mães relatam o temor de que, com várias vacinas ao mesmo tempo, os filhos tenham efeitos colaterais e não encontrem atendimento médico na UBS. O município, que fica na fronteira do país com a Venezuela, já ficou quatro semanas sem médico na atenção básica.

De acordo com Dayane Nascimento, coordenadora da área, nos últimos anos, a cidade triplicou a demanda por atendimentos de saúde com a crise imigratória do país vizinho. Também enfrenta dificuldade na contratação de médicos.

Muitas vezes, porém, é o próprio profissional de saúde que decide não vacinar a criança, segundo Moraes. Há casos, por exemplo, em que a unidade de saúde só dispõe de frascos com várias doses de vacina e, se não houver público suficiente para esgotá-las naquele dia, o que sobra tem que ser descartado.
“Aí pedem para a mãe voltar outro dia. Antigamente se perdia vacina e não a criança, hoje isso se inverteu”, diz o professor. Para ele, o ideal seria existir diferentes tamanhos de frascos. “Não dá para ter um padrão único. Poderia ser até frascos individuais para municípios pequenos.”

Quando o assunto são os problemas relacionados à aplicação da vacina, a sobrecarga de trabalho da equipe de enfermagem (80%) e a falta de pessoal para essa função (67%) aparecem como os mais citados na pesquisa da UFMG.

“Muitas vezes, o vacinador até vacina. Mas ele faz tudo, faz curativo, cuida de doente crônico. Também é muito comum a gente ver a sala de vacina com horário limitado de atendimento”, afirma Moraes.

Os municípios também enfrentam vários obstáculos para o registro dos dados de vacinação nos sistemas de informação do Ministério da Saúde, como internet instável ou falta de rede, número de computadores insuficiente e sistema municipal incompatível com o do ministério.

Segundo Wilames Freire Bezerra, presidente do Conasems, esses entraves e as formas de superá-los vêm sendo discutidos, porém há uma questão ainda mais urgente: as atuais estatísticas de cobertura vacinal.

“Elas não representam a realidade dos municípios. Estamos trabalhando em cima de estimativas feitas pelo Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 11 anos atrás, de um público infantil que não corresponde à realidade do que vemos no território.”

A nova edição do Censo estava prevista para 2020, mas foi adiada para o ano seguinte em razão da pandemia de Covid e, depois, devido ao corte de orçamento para a pesquisa no governo Bolsonaro. No último dia 1º, o IBGE anunciou o fim da coleta domiciliar do Censo Demográfico 2022.

Outro problema são sistemas de informação que não se comunicam. “Nós temos a atenção primária com o e-SUS e o sisPNI [sistema do programa nacional de imunização]. Se eu informo os dados a um sistema, o outro não consegue enxergar. Há situações em que os sistemas travam. O município promove as vacinações, mas, na hora de digitar, o sistema não recebe”, diz Bezerra.

A desinformação também é um fator importante para a hesitação vacinal e o seu impacto tem aumentado nos últimos anos, segundo Ricardo Fabrino, pesquisador do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da UFMG. A disseminação de notícias falsas é citada por 75% dos gestores e profissionais de saúde como fator que leva ao atraso ou recusa vacinal.

Eder Gatti, diretor do Departamento de Imunizações do Ministério da Saúde, afirma que os problemas são complexos e que vão precisar de várias frentes de ações a curto, médio e longo prazo.

O mais urgente, segundo ele, é regularizar os estoques de vacinas e investir em programas de capacitação de profissionais da atenção primária para a melhoria da assistência.

Gatti diz que a pasta também tem extratificado os municípios de acordo com os riscos, por exemplo, aqueles com menor cobertura vacinal contra a poliomielite ou o sarampo, e elaborado ações diferenciadas para os mais vulneráveis.

“Tudo o que a gente for fazer tem que ser discutido com o Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] e Conasems e vai depender de recursos e ajustes de oferta de mão de obra na atenção primária.”

Sobre os imbróglios envolvendo os sistemas de informação, ele afirma que os problemas pioraram a partir de 2017, com a criação de um sistema na atenção primária que fragmentou os registros de doses aplicadas. “Temos, sim, problemas de qualidade de dados e estamos trabalhando para corrigir tudo isso.”

Em relação às metas vacinais, defasadas devido ao atraso do Censo, Gatti concorda com a crítica dos municípios. “Tivemos uma pandemia, com provável diminuição de nascidos vivos. O ajuste no denominador [que virá com o Censo] vai ter impacto nos dados de cobertura vacinal.”

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