PATRÍCIA CAMPOS MELLO- (FOLHAPRESS) – Toda vez que a enfermeira Rani Simões de Resende ouve a sirene de uma ambulância chegando à UTI do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), ela sente uma angústia.
“Sei que estão trazendo mais gente, e penso: meu Deus, quando isso vai acabar, onde vamos colocar os pacientes, a emergência está lotada, a UTI também”, conta. As sirenes têm sido cada vez mais frequentes.
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Depois de seu último plantão de 12 horas, Rani chegou em casa e chorou quase uma hora, de “exaustão física e emocional”. “Quando vou dormir, o barulho das ambulâncias e dos alarmes da UTI continua na minha cabeça, o tempo todo, e penso nas coisas que eu poderia ter feito para salvar as pessoas.”
O Hospital de Clínicas, referência para atendimento de casos de Covid-19 em Porto Alegre, é um retrato do colapso do sistema de saúde do Rio Grande do Sul.
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Na sexta-feira (12), a ocupação do centro de terapia intensiva era de 132%. Havia 139 pacientes críticos com diagnóstico confirmado de Covid, mas só 105 leitos na UTI. Pacientes intubados foram acomodados em estruturas adaptadas nas enfermarias e na emergência.
No estado, havia uma fila de espera de 500 pessoas que precisavam ser internadas, mas ainda não tinham encontrado vagas em hospitais. “Hoje, em Porto Alegre, não importa se você é rico ou se é pobre, se você pegar Covid e ficar grave, não vai achar leito para se internar, nem em hospital público, nem privado. E não adianta pensar em mandar para outro estado. O Brasil inteiro está assim”, diz Fabiano Nagel, chefe da Unidade de Gestão de Pacientes Críticos do HCPA.
O hospital não tem respiradores de alta performance suficientes para dar conta da demanda. Foi preciso pegar equipamentos de outras áreas, mas eles não são ideais para pacientes tão graves.
O estoque de soluções para hemodiálise, necessária para muitos pacientes, está no limite. “Se continuar aumentando o número de pacientes graves, vamos ter que começar a racionar hemodiálise, não vamos conseguir fazer o que os pacientes precisam”, diz Patrícia Schwarz, 40, médica intensivista da UTI do HCPA.
Também não há saídas suficientes de oxigênio, então os médicos têm feito gambiarras para encaixar mais tubos.
O preço dos medicamentos usados para intubação explodiu.
Uma ampola de neurobloqueador, que paralisa a musculatura para o corpo “aceitar” o tubo, custava cerca de R$ 2 antes da pandemia. No ano passado, subiu para R$ 17, e, agora, chega a R$ 200 a ampola, relata Simone Mahmud, coordenadora de suprimentos do HCPA.
Diante da escassez de especialistas em medicina intensiva, hospitais têm convocado e treinado anestesiologistas, cardiologistas e pneumologistas para trabalhar na UTI. As equipes estão extenuadas.
O técnico de enfermagem Sílvio Rhoden, 36, dava 10 plantões noturnos por mês, cada um de 12 horas. Agora, são 14. Como faz faculdade de enfermagem de manhã, Sílvio tem dormido quatro horas por dia.
Na UTI, cada vez que vai entrar no box de um dos pacientes, precisa colocar todo o equipamento de proteção, incluindo máscara, luvas, avental, viseira. Antes de sair, tira tudo. Faz isso 30, 40 vezes por plantão. E não pode errar.
Os pacientes são muito mais jovens do que no início da pandemia, diz a epidemiologista Jeruza Neyeloff, assessora da diretoria médica do HCPA. Em 2020, a média de idade dos pacientes de Covid internados no hospital era de 57,5 anos.
Nos meses de janeiro, fevereiro e março (apenas 10 dias analisados) de 2021, as médias foram de 56 anos, 54,4 anos e 51,4 anos, respectivamente.
Entre os pacientes em estado crítico na UTI, a queda é mais acentuada. Em 2020 e em janeiro de 2021, a média era próxima de 60 anos. Em fevereiro foi de 56,6 anos e nos 10 dias de março, de 48 anos.
Na quarta (10), havia 34 pacientes de até 40 anos internados no hospital, sendo que 13 tinham menos de 30 anos.
“É uma doença totalmente diferente da que vimos no ano passado, os pacientes ficam em estado muito mais grave. É muito impressionante olhar em volta da UTI e ver que todos os pacientes estão intubados”, diz Schwarz.
No tratamento de casos graves, um dos procedimentos utilizados nas UTIs é a pronagem, que consiste em virar o paciente de bruços para facilitar a respiração. Dependendo do peso do paciente, são necessárias até oito pessoas para fazer a pronagem. É uma manobra arriscada, em um paciente que está instável, com o nível de oxigenação mais baixo, e pode haver parada cardíaca ou deslocamento do tubo.
No penúltimo plantão de Rani na UTI, ela estava com cinco pacientes, com idades entre 24 e 45 anos. Duas tiveram de ser pronadas. Depois, precisaram de ECMO (membrana de oxigenação extra-corpórea), equipamento que age como um pulmão artificial e oxigena o sangue fora do corpo, por uma membrana.
É usado apenas em pacientes muito graves, quando nem a ventilação mecânica, nem a pronagem estão dando conta.
Outros dois pacientes de Rani tiveram de fazer hemodiálise. “Corro, corro, tento fazer o melhor, mas sempre saio com a sensação de que talvez não tenha conseguido fazer tudo e que nosso melhor não vai ser o suficiente.”
Segundo Schwarz, o problema dos hospitais lotados é que “as pessoas podem não receber o tratamento apropriado, porque não tem vaga, não tem equipe para dar tratamento na velocidade necessária.”
É muito grande o impacto sobre a saúde mental. Na quinta (11), dos 10 pacientes que Schwarz acompanhava na UTI, dois morreram. “Ver pacientes jovens, que não tinham nenhuma comorbidade, morrendo, um atrás do outro, abala muito.”
Rani aumentou o número de sessões de terapia, para lidar com tudo o que está vendo.
Fora da capital, a situação é ainda mais dramática. No Hospital de Charqueadas, a 90 km de Porto Alegre, há uma fila de espera de 116 pessoas para apenas 21 leitos de UTI. “De 30 dias para cá, a situação ficou catastrófica, não temos recursos para salvar pacientes”, diz o cardiologista e internista Gustavo Feiden, que faz plantão na UTI do hospital há um ano e meio.
“Sempre gostei de trabalhar na UTI. Mas no atual momento, é cada vez mais difícil ajudar, são pacientes inertes e intubados, sozinhos, isolados, sem o conforto das famílias.”
Na sexta (12), todos os 21 pacientes estavam intubados. “É uma doença perversa. Há pacientes que chegam falando e, em quatro horas, vão a óbito.”
Os profissionais de saúde não vislumbram uma melhora. “Não existe nenhum indicativo de desaceleração, todo dia batemos recordes”, diz Nagel.
Quando recebe mensagens de WhatsApp com negacionismo sobre a doença, ou vídeos dizendo que os hospitais estão vazios, Nagel fica revoltado.
“Tenho vontade de trazer essas pessoas para dentro da UTI e mostrar uma moça de 25 anos, intubada. Mas nem assim elas iriam entender o que está acontecendo.”
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