IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O chanceler da Rússia, Serguei Lavrov, desembarca nesta segunda-feira (17) em Brasília para uma viagem de dois dias ao país, na primeira etapa de um giro em que seguirá para três adversários dos Estados Unidos na América Latina próximos do PT.
Mais do que a visita de Estado à China, em que já foi difícil para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sustentar a imagem de neutralidade no contexto da Guerra Fria 2.0 entre Pequim e Washington, a vinda de Lavrov posiciona o Brasil de um lado do conflito na Ucrânia aos olhos da diplomacia americana e ocidental.
Para o Itamaraty e para o Kremlin, isso é irrelevante, e a visita é uma prova de uma saudável independência brasileira em um mundo que não comporta dominâncias e blocos estanques. Para críticos, é um alinhamento excessivo entre o Brasil e a Rússia –condenada pela maioria dos países da ONU por sua guerra.
Nem tudo será consenso, apesar do avanço recente das compras brasileiras de óleo diesel da Rússia, que deve estar na agenda. Haverá nas conversas em Brasília o espinhoso tema dos alegados espiões russos que se passavam por brasileiros, um assunto em apuração pela Polícia Federal.
Para complicar, advogados do notório opositor de Vladimir Putin Alexei Navalni dizem que ele está em estado crítico na cadeia, supostamente envenenado pela segunda vez. Se morrer com Lavrov junto à Lula, o constrangimento internacional é certo.
Descontando esse cenário extremo, tudo tende a ser ofuscado pelo contexto geral. A ambiguidade brasileira em relação à invasão russa de 2022 precede o conflito, quando o então presidente Jair Bolsonaro (PL) visitou Moscou e prestou solidariedade ao colega Putin uma semana antes das tropas do Kremlin atravessarem a fronteira.
O motivo é a dependência brasileira de fertilizantes russos, que somam mais de 20% do mercado nacional. Havia outros itens na pauta, como a necessidade brasileira de acesso a combustível nuclear certificado para o reator atômico de seu futuro submarino.
Mas os fertilizantes dominam a conversa. Eles puxaram o aumento do fluxo comercial Brasil-Rússia em pleno regime de sanções ocidentais a Moscou: em 2022, os brasileiros compraram 37% a mais produtos russos do que em 2021, somando US$ 7,8 bilhões, um balança superavitária para Moscou em US$ 5,9 bilhões.
Ao mesmo tempo, o Brasil votou duas vezes na ONU condenações à agressão contra Kiev, ainda que tenha rejeitado aplicar sanções à Rússia. O pragmatismo, consonante com a posição histórica do país, acabou ampliado com a volta de Lula ao poder.
Afinal, foi sob suas duas passagens pela Presidência anteriores que o Brasil estimulou, anabolizado pelo boom de commodities da China nos anos 2000, uma diplomacia mais agressiva ao buscar parcerias no chamado Sul Global. O Brics, o bloco que une até adversários como Índia e China, foi resultado disso.
No começo do ano, o petista rejeitou um pedido da Alemanha para vender munição de velhos tanques Leopard-1 que opera, que seriam repassados junto com os carros de combate do modelo que a Europa enviará ao esforço de guerra ucraniano. Disse que isso fere a ideia de neutralidade.
Kiev protestou, e o próprio presidente Volodimir Zelenski convidou o brasileiro a visitá-lo, sem sucesso. Lula já havia irritado os ucranianos ao dizer que o líder era tão responsável quanto Putin pela guerra e, recentemente, foi criticado por sugerir que a paz poderia ser alcançada se a Ucrânia cedesse território.
Há duas semanas, Lula enviou o influente assessor e ex-chanceler Celso Amorim para encontrar-se com Putin no Kremlin. Agora, Lavrov devolve a cortesia. “Qual a vantagem disso?”, questiona Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington.
A terceira encarnação de Lula presidente, aproveitando a terra arrasada deixada por Bolsonaro no campo internacional, buscou vender a ideia de que o país está de volta ao jogo. Só que, em vez de focar em temas sobre os quais há consenso do peso brasileiro, como crise do clima e segurança alimentar, Lula mira alto.
Quer assento em um tema vital de segurança mundial, a Guerra da Ucrânia. Sugeriu a criação de um “clube da paz”, ideia bombardeada pelos EUA por incluir a China, aliada russa, e elogiada em Moscou e Pequim.
Para críticos, isso oscila entre deslumbramento e o risco de ser usado por Putin e Xi Jinping. No caso russo, a vinda de Lavrov serve à necessidade do Kremlin de mostrar que não está isolado. Em artigo à Folha, o chanceler falou sobre a importância de um mundo sem a unipolaridade americana do pós-Guerra Fria.
Esse tempo de todo modo acabou, como os múltiplos desafios enfrentados pelos EUA demonstram: crises econômicas, fracassos militares e a ascensão chinesa –exacerbada pelo papel de Xi Jinping, o mais poderoso líder do país em mais de três décadas.
Decano da grande diplomacia mundial, Lavrov está no cargo desde 2004. Com experiência prévia de dez anos na ONU, sempre foi respeitado como um ponderado negociador multilateral.
A crescente agressividade do Kremlin –vista na tentativa de impedir a expansão da Otan, a aliança militar ocidental– colocou Lavrov sob fogo dos antigos admiradores.
Diplomatas e analistas russos contemporizam, dizendo que Lavrov, 73, não tem influência decisiva sobre as medidas do chefe. Seja como for, ele tem passado dificuldades públicas, como quando um comentário seu afirmando que a guerra foi imposta à Rússia pelo Ocidente foi alvo de risadas de uma plateia. Ao mesmo tempo, segue em alta costura, tendo organizado a pomposa visita de Xi a Putin.
Para completar o quadro, Lavrov deixará Brasília rumo a três ditaduras próximas de Moscou, e também do PT e da esquerda, na região: Venezuela, Nicarágua e Cuba.
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