SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Você chega da escola, senta no sofá e liga a TV. O hábito se repete diariamente porque o retorno para casa marca o horário em que seu desenho favorito vai passar. Essa era a rotina de muitas crianças que cresceram até os anos 2000, quando a televisão reinava e a internet ainda não havia tomado o mundo do entretenimento.
Mas hoje as coisas são diferentes. Os pequenos da geração Z –aquela nascida nas últimas duas décadas– não têm tanta urgência em ligar a telinha. Na verdade, a TV muitas vezes nem precisa ser acionada, já que computadores, tablets e celulares hoje dão acesso à programação infantil na hora em que quiserem.
Muito se fala sobre como o streaming e a internet transformaram nossa relação com as séries e os filmes, mas, frequentemente excluídas desse debate, as crianças talvez formem o público para o qual as mudanças vieram de maneira mais drástica e profunda. Cada vez mais a TV se desprende da programação infantil e, com isso, plataformas de streaming têm visto uma boa oportunidade para abocanharem essa fatia do mercado.
Líder do setor, a Netflix tem sido rápida em garantir acordos com gente que antes criava para canais como Cartoon Network e Nickelodeon. Um deles é Craig McCracken, ícone de toda uma geração noventista por ter concebido desenhos premiados como “As Meninas Superpoderosas”, “O Laboratório de Dexter” e “A Mansão Foster para Amigos Imaginários”.
Sob contrato com o gigante do streaming, ele lança agora sua primeira produção para esse tipo de plataforma, “Kid Cosmic”. O desenho acompanha um garoto que é fã de quadrinhos e que encontra pedras que dão a ele superpoderes, vindas de outro planeta.
Além de ser seu primeiro trabalho para o streaming, “Kid Cosmic” é ainda o primeiro desenho serializado de McCracken. Isto é, o primeiro em que cada episódio avança na trama, sendo necessário assistir a todos para entender a temporada. Nos programas infantis concebidos para a TV, normalmente, os capítulos não são exibidos necessariamente em ordem cronológica e cada um tem seu próprio início, meio e fim.
“Quando eu comecei no ramo, a ideia era criar o maior número de episódios possível, que pudessem ser transmitidos em qualquer ordem, por anos a fio. Mas o problema disso é que você nunca pode permitir que um personagem mude, que ele cresça. No fim de um episódio ele pode até aprender uma lição, mas no próximo ele vai ter que passar pelo mesmo ciclo novamente”, afirma McCracken, em conversa por telefone.
Dividido em três temporadas, o recente remake de “As Meninas Superpoderosas”, por exemplo, teve 112 episódios. Para efeito de comparação, “Game of Thrones” precisou de 73 capítulos para sua história, que se arrastou por oito temporadas. Já “Kid Cosmic” debuta com dez episódios.
Segundo McCracken, a linha de produção do novo título também foi diferente das adotadas em seus projetos para a TV. Mais conciso, o desenho pode ser desenvolvido de uma vez, enquanto antes McCracken precisava produzir ao mesmo tempo em que os episódios eram exibidos. Se mais à frente na história ele quisesse mudar alguma característica de seus personagens, bastava fazer ajustes nos capítulos inaugurais.
“Isso tem muita relação com o futuro do audiovisual, com a maneira como as pessoas estão consumindo mídia. A ideia de ligar a TV num mesmo dia, na mesma hora está acabando. Nós não vamos mais ver desenhos por anos e anos, nós teremos conteúdos mais curtos que, quando terminarem, darão espaço para uma outra ideia.”
Por enquanto, a Netflix tem concentrado contratos com nomes e produtoras importantes do meio infantil. Até o oscarizado Guillermo del Toro desenvolveu desenhos animados para o serviço. Mas, conforme novos serviços de peso vão chegando ao mercado, a tendência é que esse cenário fique mais equilibrado.
A Netflix assinou nos últimos anos, por exemplo, contratos com a Nickelodeon e o Cartoon Network, dois dos principais canais fechados para os pequenos. Eles incluíam a distribuição de conteúdo antigo e a produção de novos programas. Mas a Nickelodeon é da ViacomCBS, que deve lançar o streaming Paramount+ ainda neste semestre, e o Cartoon é parte da WarnerMedia, que chega em breve ao Brasil com o HBO Max.
Quem tem um laço mais forte com a Netflix, no entanto, é a Universal, que licenciou franquias importantes de seu acervo para o streaming –de “Jurassic World”, que ganhou versão animada, até sucessos da subsidiária DreamWorks, como “Shrek”, “Trolls” e “Como Treinar o Seu Dragão”.
Mais rápido parece ter sido o Disney+, que, destinado ao consumo de toda a família, vem apostando nos conteúdos infantis –seja ao criar derivados de clássicos da turma de Mickey Mouse ou ao abastecer a plataforma com programas de sucesso do Disney Channel. O canal infantojuvenil, aliás, deixou de operar no Reino Unido em outubro.
Falando em Disney Channel, vale lembrar que um dos principais criadores de conteúdo para o canal foi Kenny Ortega, das trilogias de sucesso “High School Musical” e “Descendentes”, além do clássico cult “Abracadabra”. Hoje, ele tem contrato com a Netflix.
A mudança de casa mostra que as transformações na programação infantil não estão restritas aos desenhos e também atingem filmes para a televisão, séries em live-action e programas de variedades. Tampouco impactam só a TV fechada, já que a aberta há algum tempo vem se esquecendo dos pequenos.
Segundo Ariane Holzbach, professora da Universidade Federal Fluminense que coordena um grupo de pesquisa sobre o assunto, as mudanças na forma como o conteúdo infantil é produzido e distribuído são anteriores à popularização do streaming. Ela diz que, por razões econômicas, como a restrição de publicidade infantil, muitas emissoras decidiram reformular suas grades, no Brasil e no mundo.
“Não é que não exista programação infantil no geral, a gente ainda encontra ela em canais como SBT e TV Brasil, mas a Globo, por exemplo, que é a grande hegemônica, simplesmente extinguiu há muitos anos as crianças de sua programação aberta”, diz ela, sobre o que já foi a casa de “TV Colosso”, “Sítio do Picapau Amarelo”, “TV Globinho” e da rainha dos baixinhos, Xuxa.
Holzbach ainda é mãe de um menino de seis anos e, ao acompanhar os catálogos infantis disponíveis no streaming, constatou que o conteúdo para os pequenos começou a aparecer de forma massiva há só três anos. E esse contexto, aliado à emergência do YouTube e de outros sites que miram os pequenos, acredita ela, está dando origem a um novo tipo de infância.
“Eu não tenho dúvidas de que essa geração vai ser totalmente diferente das anteriores, porque as crianças hoje têm muito mais autonomia para manipular e escolher e, pela primeira vez na história, também para criar conteúdo audiovisual”, diz em referência aos youtubers mirins. “A gente não consegue prever muito bem o que isso vai gerar, porque é algo inédito.”
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Disputa pelos pequenos
Netflix
Lança agora “Kid Cosmic”, depois de fechar contrato com Craig McCracken, veterano do Cartoon Network e criador de desenhos que marcaram os anos 1990 e 2000. Tem firmado outras parcerias com produtoras da área e com nomes de peso, como o cineasta Guillermo del Toro e Kenny Ortega, ex-Disney Channel.
HBO Max
Programado para chegar ao Brasil ainda neste ano, o serviço da WarnerMedia deve reunir conteúdos de um de seus mais celebrados canais, o Cartoon Network, além de filmes do catálogo da Warner.
Paramount+
O novo serviço da ViacomCBS estreia na América Latina em março. A empresa é detentora do mais antigo canal pago infantil dos Estados Unidos, a Nickelodeon, e tem sob sua alçada personagens clássicos, como Bob Esponja.
Disney+
O serviço aproveita o vasto acervo da Disney, que deu seus primeiros passos com as animações, para ganhar a atenção das crianças. Além dos filmes já conhecidos, tem produções vindas do canal Disney Channel e derivados de seus clássicos animados.
YouTube Kids
Versão mirim e gratuita do YouTube, reúne conteúdo publicado na internet por qualquer um –até mesmo pelos próprios pequenos.
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