Karim Aïnouz faz thriller erótico e se prepara para dirigir Kristen Stewart

LEONARDO SANCHEZ
BEBERIBE, CE (FOLHAPRESS) – Um prédio pintado de tons fortes de roxo e laranja se ergue como uma miragem na paisagem arenosa, borrada pelo calor, de Beberibe, a cerca de 80 quilômetros de Fortaleza. Com a palavra “motel” colada na fachada, o edifício poderia ser só mais um entreposto para amantes, mas a escolha cromática berrante o torna descolado demais da realidade para isso.

Tamanha artificialidade não é injustificada. O motel Destino opera há anos, mas só agora ganhou o nome e as cores intensas, quase almodovarianas, que o destacam naquela paisagem em grande parte natural. É que Karim Aïnouz o escolheu para gravar seu próximo longa-metragem e tratou de adequar seu visual à estética afetada que buscava.

“Motel Destino”, como o filme também vai se chamar, é um retorno do cineasta ao seu Ceará natal, depois de rodar o britânico “Firebrand” e pegar um barco para a Argélia, de onde vêm os documentários “Marinheiro das Montanhas” e “Narjes A.”, que desembarcam nos cinemas brasileiros nos próximos dias.

E, se em “Marinheiro das Montanhas” ele voltava às origens indo atrás de pistas sobre o pai que só conheceu por fotos, em “Motel Destino” o retorno é às raízes de seu cinema, ao gravar no Ceará e recuperar tudo que o firmou como um dos diretores mais celebrados do país.

Há paixão insensata, violências mascaradas, flerte com o melodrama, atenção para o marginal e um olhar sensível para seus personagens, traços que se tornaram marcantes em seu cinema desde o longa de estreia, “Madame Satã”, de 2002, e que foram elevados à máxima potência na mais premiada de suas obras, “A Vida Invisível”, que em 2019 levou o prêmio da mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes.

“Não é como se ‘Marinheiro das Montanhas’ tivesse me preparado para voltar às raízes. Ele é a continuidade de um projeto, de um percurso muito pessoal”, diz Aïnouz, sobre sua filmografia, na qual vê um fio condutor que entrelaça todos os títulos.

Um tanto experimental, o documentário teve recepção calorosa em Cannes há dois anos e joga com filtros de cor e uma narração sentimentalista do cineasta. Em sua préprodução, o cearense aproveitou ainda para gravar com o celular “Narjes A.”, sobre uma ativista argelina.

“Eu estava com saudade do Ceará. Fiquei cinco anos sem vir ao Brasil e queria voltar para o lugar onde comecei, fazendo curtas em Super 8. É um lugar onde posso ser livre, leve, e que conheço, então tenho legitimidade para falar a respeito. Acabei de sair de um filme gigante, onde tinha que escrever um memorando para cada posição de câmera, então queria recuperar a sensação de quando comecei a fazer cinema.”

A menção é a “Firebrand”, que teve recepção morna no Festival de Cannes deste ano, algo que não parece incomodar o cineasta. Sua primeira produção em inglês, o drama histórico traz Alicia Vikander e Jude Law como Catarina Parr e Henrique 8°, que ele chama de serial killer.

Com boas pretensões de bilheteria e escala impensável para produções nacionais, “Firebrand” foi uma experiência descrita pelo cineasta como “um tesão”, embora não a ponto de o levar em definitivo, ao menos profissionalmente, para longe do Brasil -ele mora em Berlim. Em seu mundo ideal, intercalaria uma produção nacional com uma estrangeira.

É o que faz agora. Ignorada a dobradinha documental, o cearense saiu dos morros solares do Rio de Janeiro vistos em “A Vida Invisível” rumo às torres lúgubres da Inglaterra de “Firebrand”. Agora filma os coqueiros que invadem o céu azul em “Motel Destino” para, no ano que vem, se dedicar a “Rosebushpruning”, que o levará à Espanha para dirigir Kristen Stewart, Josh O’Connor e Elle Fanning.
Foram três meses de gravações, e Aïnouz recebeu a reportagem na última semana, sob um sol escaldante que iluminava o enorme motel.

Escolhido após visitas a cerca de 60 estabelecimentos pelo estado, ele supriu necessidades dramatúrgicas e técnicas -quartos de motel costumam ser apertados, dificultando o trabalho de câmera- e criou um estúdio em miniatura.

Dentro do motel, as garagens individuais que antes abrigavam amantes motorizados se transformaram em salas para cada departamento do longa. Os corredores que conectam as suítes facilitaram a movimentação da equipe e equipamentos. Os fundos, com uma casinha debilitada, viraram locação. Ele queria comprar isso e fazer um Veraz Cruz, brinca a equipe que perambula por ali.

Este set tem presenças estranhas. Aïnouz se cercou de talentos nordestinos para “Motel Destino” -“é importante que a gente divida o que construiu”, afirma o cineasta-, mas recebeu ali produtores estrangeiros que injetaram dinheiro no filme e já garantiram a distribuição fora do Brasil.

Da França veio a Maneki Films. Da Alemanha, a The Match Factory. Pelo Reino Unido, participam a Brouhaha Entertainment e a Written Rock. Elas se juntam às brasileiras Cinema Inflamável e Gullane, com Globo Filmes, Telecine e Canal Brasil.

“A paixão do Karim por esse projeto, que é um retorno às suas raízes, é contagiante”, diz Didar Domehri, da Maneki. “Apesar de esse filme provocativo explorar as dinâmicas de poder de um país específico, as questões que ele levanta são universais e vão tocar um público global.”

Também do velho continente veio Hélène Louvart, diretora de fotografia que trabalhou com ele em seus dois últimos longas. É ela, curiosamente, quem mais exala energia no set.

“Violet.” “No, yellow, yellow, yellow”, diz Louvart num inglês carregado de sotaque, tentando acertar a iluminação entre o violeta e o amarelo na portaria do motel. “Perfect”, grita, ao jogar sobre o rosto da atriz um caramelo quente e saturado.
Tudo no quartinho parece improvisado, velho, carcomido pelo tempo. É algo indispensável ao visual brega que Aïnouz queria. “Uma coisa kitsch, camp, quase de mau gosto.”

Ele comemora o interesse estrangeiro por “Motel Destino”, que espera ser o seu filme mais popular. Para isso, se apropriou do cinema de gênero americano, criando um thriller erótico longe da elegância de Kubrick em “De Olhos Bem Fechados”, mas com influências que vão de Brian De Palma e o cinema noir a “Pink Narcissus”, um delírio rosa-choque filmado por James Bidgood em 1971.

Aïnouz vibra ao ouvir a menção ao filme, precursor do cinema queer, enquanto mostra uma cena. Nela, a câmera voyeurista percorre os corpos nus do casal protagonista, iluminados por tons rosáceos enquanto sonham acordados sobre a cama. As imperfeições da pele são ressaltadas pelo granulado da película, que confere textura e sensualidade.

O branco foi banido por Aïnouz, dizem seus departamentos de arte e figurino. Mesmo na ausência de cores artificiais, nas externas, é possível notar a onipresença de tons fortes. Numa outra cena que mostra à reportagem, uma sunga verde-esmeralda dança pelas falésias de uma praia da região, conforme um corpo esbelto e bronzeado se aproxima.
Em outra, é um shortinho vermelho que grita em contraste com a areia. “A memória do cearense é permeada por cor. Temos um sol chapado, o céu aberto, as pessoas se vestem com exagero, então em qualquer lugar há cor. Cor é sexy”, ele afirma, descrevendo ainda o filme como um sonho febril.

Para realçar esses tons, “Motel Destino” foi gravado em 16 milímetros, algo raro e caro na era das câmeras digitais. O cearense não queria abrir mão da involução tecnológica, em parte por causa do mergulho nos primórdios de seu cinema, mas também por questões estéticas e técnicas.

“O digital foi pensado para gravar no hemisfério norte. Não fica bom nas paisagens do Equador, para a luz mais intensa daqui. E eu tinha vontade de ter maior rigor para filmar, pensando nas limitações de tempo da película. É uma restrição que se torna produtiva”, diz, sobre os rolos de filme finitos, apesar de a decisão ter aumentado o orçamento do filme.

Ele viu as primeiras cenas gravadas com duas semanas de atraso, já que teve de enviar os rolos para serem revelados na França. “É uma loucura, mas legal porque dá um friozinho na barriga”, diz. Também traz à memória o cinema americano da década de 1970, do qual “Pink Narcissus” faz parte, e que Aïnouz tentou emular à moda brasileira. Aqueles anos foram marcados pelo furor da derrubada do Código Hays, cartilha que censurava Hollywood e que manteve em especial cenas de sexo longe das telas por quatro décadas.

Como várias produções da época, “Motel Destino” toma forma em doses de libido, que ele buscou também nas pornochanchadas. “O filme remete a um momento do cinema de muita liberdade”, afirma.

“Essa coisa do gênero vem de querer um diálogo mais imediato com o público. O gênero deixa isso mais fácil, e o crime me interessa enquanto possibilidade de transgressão política. Sempre fui interessado nos programas barra pesada de crime. É um lugar produtivo para mim e também é popular. Eu queria antropofagizar esse gênero, me apropriar dele”, diz, adicionando ainda o cinema policial ao caldeirão de “Motel Destino”.

Quase que inteiramente ambientado no pernoite, o longa tem Fábio Assunção como seu rosto mais conhecido. Ou quase. O ator emagreceu, perdeu massa muscular e assumiu pose de machão para encarnar o ex-policial que é dono do motel.

Abusivo com a mulher, ele vê um triângulo amoroso se formar quando um jovem recém-saído da prisão aparece, se envolvendo com ela e mergulhando a trama numa espiral de violência. “É um encontro de iguais entre dois personagens fraturados”, diz Aïnouz, sobre os protagonistas de Iago Xavier e Nataly Rocha, atores locais selecionados após testes com cerca de 500 candidatos.

Ele espera que o trabalho sirva de trampolim para as carreiras deles, a exemplo do que fez com o pernambucano Jesuíta Barbosa no drama gay “Praia do Futuro”, que o ator filmou em paralelo com “Tatuagem”.

“A gente vê pouco o rosto desses meninos no nosso cinema. Tem mudado, mas ainda é pouco. Falta um mergulho vertical nesse tipo de figura, na história desses personagens.”

Estreante num set, Xavier nem por isso se acanhou diante das câmeras. Devido ao alto teor sexual de “Motel Destino”, dois dublês de corpo ficavam a postos para quando ele e Rocha não se sentissem confortáveis em gravar as cenas quentes -mas a substituição não foi necessária.

“Deem tudo de si, vocês nunca mais vão fazer essa cena, se divirtam”, dizia Aïnouz aos novos musos para quebrar o gelo antes de uma das sequências mais verborrágicas e também mais pornográficas do longa. Ele, então, ergue os braços bem acima da cabeça, cria suspense e, violentamente, os derruba. “Ação!”

Assim que os corpos se enroscam nos lençóis cor de abóbora do motel, os protagonistas entram no quarto e a equipe sai, todos, com exceção do diretor, da fotógrafa, da coordenadora de intimidade e de outros poucos cargos essenciais, para não constranger os atores.

Pelos fones, era possível ouvir os sons de urros e gemidos dando vida ao motel em hibernação. “Você é o homem mais gostoso que eu já peguei.” “Eu gosto muito de te foder”, diziam os atores várias e várias vezes, numa direção obsessiva que buscava a perfeição para aquele momento tão crucial para a trama, pesado em palavras, visuais e, claro, toques.

“Eu sou superlativo na vida e queria fazer algo superlativo, exagerado nesse filme”, diz Aïnouz. “Às vezes a gente tem medo, mas não é algo que eu deveria ter nessa altura da vida.”
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O repórter viajou ao Ceará a convite da produção

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